Entrevista – Emil Sabbaga

Para entrevistar um dos maiores nefrologistas do Brasil, reunimos pequeno grupo e zarpamos para o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo: Dr. Décio Mion (USP), Dr. Istênio Pascoal (BSB) e a jornalista Marli Gregório. Fomos recebidos com muita simpatia, descontração e amizade pelo Dr. Emil. Numa manhã cheia de compromissos, o Dr. Emil separou um tempo na sua agenda para nos receber. Valeu a pena o bate papo. Com momentos de emoção espalhados ao longo dos 90 minutos e outros de muito humor, a entrevista seguiu firme.


Dr. Décio:
Eu gostaria de fazer a primeira pergunta ao Prof. Emil. Considero uma pergunta muito importante para quem se dedica à Medicina: porque o senhor escolheu ser médico?

Dr.Emil: Olha, essa pergunta tá um bocadinho fora de época (risos), faz tanto tempo que eu me formei….1951. Eu realmente não posso dizer a você o porque, mas me lembro que quando eu passava de bonde -naquele tempo tinha bonde na Dr. Arnaldo, eu via o prédio da Faculdade e achava bonito aquela construção e dizia comigo: “acho que eu gostaria de estudar nessa escola”. Era muito criança…deveria ter uns 14, 15 anos, talvez a imagem do prédio da Faculdade realmente tenha influido. Não tem ninguém médico na família, meus pais não eram médicos, meus tios não eram médicos e eu acho que foi mais o aspecto histórico, sem saber direitinho o que era medicina, mas…eu me fixei muito foi no prédio da Faculdade de Medicina.

Dr. Décio: Isso é interessante… a pergunta seguinte, apesar de fazer bastante tempo, como o senhor escolheu a nefrologia?

Dr. Emil: A Nefrologia foi uma coisa curiosa e eu gostaria de historiar um bocadinho isso aí… todo o problema. Quando estava no terceiro ano da Faculdade de Medicina, eu não tinha nenhuma especificação de especialidade. No Centro Acadêmico Osvaldo Cruz, no porão da faculdade, eu vi um anúncio escrito à mão dizendo: “os acadêmicos interessados em fazer algum trabalho de pesquisa podem procurar o Prof. Dr. José Barros Magaldi”. Ele não era professor, ele era o Dr. Magaldi, eu não o conhecia, mas fiquei interessado naquele papelzinho pregado na parede. Um dia subi e fui procurar o Magaldi. Ele estava no terceiro hormônio anti-diurético. Como Magaldi naquela época estava muito ligado a rim – hipertensão, acabei ficando ligado também, junto a ele, nessa área. Então, foi um caminho mais ou menos natural, trabalhava com o Magaldi experimentalmente e daí passar para parte clínica foi um passo muito fácil. Talvez a Nefrologia venha basicamente dos meus estudos iniciais de hormônio anti-diurético em rato, aliás eu apresentei tremendo de medo, ainda acadêmico, numa reunião da Sociedade Brasileira do Progresso da Ciência, quando a Sociedade era muito pequenininha, pois hoje é enorme e talvez seja um dos maiores Congressos do Brasil na área médica, mas naquele tempo era pequeno e reunia no máximo 80 participantes. Assim começou meu interesse pela nefrologia.

Dr. Istênio: Dr. Emil, nessa época, 1950, a nefrologia ainda não existia como especialidade. Como é que o senhor transitou de 1950 prá 60 e quando se definiu realmente?

Dr. Emil: Bom, eu vou contar uma coisa que pouca gente sabe. Quando eu era Residente de Clínica Médica (naquele tempo só tinha de Clínica Médica), meu companheiro de residência, que hoje é um pneumologista já aposentado, mas que fez um nome muito grande em São Paulo, era o Dr. João Valente Barbas Filho. Eu e ele éramos residentes de Clínica e trabalhávamos num andar específico: a terceira Clínica Médica, cujo professor regente à época era o Professor Otávio Rodovalho, pois o titular tinha morrido. Nessa Clínica, trabalhavam o Dr. Barros Magaldi, o Dr. Reinaldo Chiaverini (um cardiologista muito lembrado ainda) e trabalhava também um indivíduo chamado Ariovaldo de Carvalho, que tinha feito Docência sobre abscesso de pulmão. Pois bem, Dr.Valente e eu, trabalhando nessa clínica, achamos que era mais ou menos oportuno dividi-la em áreas específicas. Eu quero crer que foi a primeira divisão de especialidades feito no Brasil. Pode ser que eu seja pretensioso demais, mas eu tenho impressão que foi em 1953. Dr. Valente e eu conversamos com o Dr. Rodovalho e dissemos: porque que nós não transformamos essa Clínica em áreas específicas? Dr. Magaldi fica com a área de hipertensão e rim, Dr. Chiaverini com área de coração, Dr.Ariovaldo com área de pulmão e os outros elementos que lá trabalhavam que não tinham uma afinidade específica por nada, ficam no chamado grupo múltiplo ou geral. Então, foi pela primeira vez criado um grupo específico de nefrologia. Em 1953 na Terceira Clínica Médica, sob a regência do Dr. Otávio Rodovalho. Eu acho que a Nefrologia começou aí. Pode haver opiniões discordantes, por exemplo, o Professor Ramos, da Escola Paulista, era cardiologista mas se interessava também por rim, embora não tivesse definido especificamente uma área de nefrologia. Mas aqui, em 1953, foram definidas área de pulmão, área de coração e área de nefrologia.

Dr. Sebastião: Oswaldo Ramos ou Jairo Ramos?

Dr. Emil: Jairo. E nesta ocasião todos os pacientes com hipertensão ou doença renal entraram no grupo do Dr. Barros Magaldi, que se tornou o primeiro Professor de Nefrologia. Eu acredito (eu não sei se tinha algum outro Professor de Nefrologia no Brasil), que ele foi o primeiro Professor de Nefrologia titulado com essa especialidade, aqui na USP.

Dr. Sebastião: E com relação ao mundo, qual era a defasagem entre a nefrologia já aparecendo no mundo e aquí no Brasil?

Dr. Emil: Não foi grande não, eu tenho impressão que nós, a nossa Sociedade, é mais antiga do que a Americana…

Dr. Istênio: Sete anos mais antiga.

Dr. Emil: …mais antiga que a Americana. Quando eu fui trabalhar em Nefrologia nos Estados Unidos o setor era cardionefrologia, ainda era misto, era cardiologia e nefrologia na mesma área. E o chefe do serviço era o John Merryl. Mas nossa sociedade é mais antiga. Eu tenho imprensão que a mais antiga que a nossa talvez seja a francesa.

Dr. Décio: Francesa…

Dr. Emil: Francesa, e logo depois foi a nossa. Eu me lembro muito bem onde se fundou a Sociedade Brasileira de Nefrologia: foi aqui no anfiteatro deste hospital. Eu tenho até fotografia. Tenho até lista. Tenho impressão que o Décio, atual Editor do JBN, tenha esta lista dos fundadores. Eu sou um dos poucos fundadores. Cabia no anfiteatro a sociedade toda. E veio, especialmente convidado da França, o professor Gabriel que ainda é vivo.

Dr. Décio: Eu gostaria de acusar a presença do Prof. Luis Estevam Ianhez, que também irá participar da entrevista com o Prof. Emil Sabbaga. Então, Prof. Emil, pode dar continuidade à resposta a respeito da Sociedade.

Dr. Emil: É, a Sociedade coube inteirinha dentro do anfiteatro desse hospital. Na fundação foi convidado o Prof. Hamburger, de Paris, e ele veio logo depois de ter estado aqui o Prof. Gabriel que, durante certo tempo, ficou treinando conosco a utilização do rim artificial. Aliás, o rim artificial foi realmente o marco inicial de onde nasceu toda nefrologia. A nefrologia começou com a insuficiência renal aguda. Então, se existe um termo para definir o inicio da Nefrologia, foi o da insuficiência renal aguda.

Marli: Professor, eu gostaria que o senhor falasse um pouco do início da SBN? Quantas pessoas? Os fundadores, Dr. Israel, o senhor, Dr. Decourt, o início da entidade como foi?

Dr. Emil: Olha, a nefrologia se desmembrou da cardio, mas todos nós nefrologistas iniciais éramos cardiologistas. Nós íamos aos Congressos de Cardiologia e com o advento do rim artificial, um grupo da cardiologia, se desmembrou e ficou em volta do rim artificial, criando a especialidade nova. Por isso, se você tiver o cuidado de ler quais foram os fundadores da SBN, verá que muitos eram cardiologistas. Eram cardiologistas do Rio, cardiologistas em São Paulo e continuaram cardiologistas. O Prof. Nebrum é um exemplo, embora ele seja um fundador da nefro, nunca foi um nefrologista. Assim também um fundador da nefro de Belo Horizonte, o Caio Benjamim Dias, ele nunca foi um nefrologista, embora pertencesse a comunidade cardiológica, resolveu se interessar por nefrologia. Alguns nomes, eu me lembro, dos fundadores da Nefro que continuaram com a nefro e ainda estão aqui: Dr. Oswaldo era um fundador nosso, Dr.Horácio Ajsen se não me engano, também estava nessa ocasião como fundador, o Dr. Carlos Vilela de Faria – que se aposentou, mas ele era um dos fundadores da nefrologia e está vivo. O Israel Nussenzveig, que trabalha conosco, era do grupo de fundadores da nefrologia. E tinha alguns urologistas também que vieram mais prá engrossar o número, porque os nefrologistas eram tão poucos que alguns cardiologistas e alguns urologistas se juntaram para fazer a sociedade. A sociedade era muito pequena. Ela cresceu brutalmente nesse intervalo de tempo, mas era muito pequena a coisa.

Dr. Décio: O Tito Ribeiro também?

Dr. Emil: O Tito também, aliás está vivo (Nota do Editor: Dr. Tito faleceu logo depois)

Dr. Istênio: Dr. Emil, fica a impressão de que quando o senhor foi pros Estados Unidos, no começo da década de 60, já era um nefrologista assumido e exclusivo.

Dr. Emil: Era.

Dr. Istênio: Já fazia nefrologia pura?

Dr. Emil: Pura. Nefrologia pura naquela época era insuficiência renal Aguda, pois nefropatia de maneira geral, glomerulopatias, era muito primário o conhecimento?

Dr. Istênio: Vamos aproveitar. O senhor poderia relatar como foi a sua ida para os Estados Unidos? Quais foram as motivações para ir e como foi a sua experiência lá ?

Dr. Emil: Bom, o que realmente me motivou foi o fato de ter começado nos Estados Unidos o transplante de rim, em Boston. E John Merryl era uma figura muito conhecida e publicava muito no “New England”, que era uma revista de acesso fácil prá todo mundo. Não tinha revista da especialidade nefro naquele tempo, elas vieram depois que se fundou a Sociedade Internacional de Nefro. Você sabe que Nephron foi a primeira revista oficial da Sociedade Internacional de Nefrologia, depois é que veio o Kidney. Mas, o “New England” era a revista “oficial”. Quando eu fui para os Estados Unidos, fui motivado por transplante de rim. Os mais jovens não sabem, mas naquela época, em 1960, a única coisa que a gente podia fazer para o renal crônico era confortar a família, não havia nenhuma outra possibilidade. Quando fui para os Estados Unidos não se fazia diálise crônica, nem aqui, nem lá. Então, a diálise era feita para agudos e se usavam 4 diálises por paciente, porque só era prossível práticar essas 4 sessões: radial de cá, radial de lá e dois pediosos. Terminavam as 4 e não tinha mais acesso. Tínhamos que manter o paciente com uremia máxima antes de dialisar, prá não perder a chance de fazer pelo menos 4 diálises. Bom, quando surgiu o transplante me interessei muito no Programa de Transplante, embora aquilo não fosse uma coisa fácil de entender e o professor Cintra (Antônio Barros de Ulhoa Cintra, entao Professor de Clinica Medica da USP) me deu um grande apoio nessa ocasião Ele me disse: “porque você não vai prá lá, não tentar entender um pouco de transplante?”. Eu escrevi para o Dr. Merryl. Uma carta feita a três mãos, porque naquele tempo meu inglês não permitia tradução correta e o Cintra viajaria logo em seguida para Boston. Esperei a volta do Cintra e ele encontrou-se comigo e disse: “Sabbaga, notícias muito tristes, eles não estão aceitando nenhum fellow da América do Sul porque existe muito candidato americano querendo trabalhar com Merryl e ele tem um limite de 8 fellows por ano”. Continuou me dizendo: “De modo que eu soube e conversei com Dr. Merryl e ele me disse que você não teria chance de ir prá lá”. De repente, eu fiquei frustrado, porque o currículum que eu tinha mandado, continha todo o número de diálise que eu tinha feito aqui. Rim artificial já existia, isso desde 1957, e eu trabalhava intensamente em rim artificial. Eu ficava dialisando todos doentes que apareciam de insuficiência renal aguda e então tinha um número dediálises bastante razoável, mais de 400 diálises feitas e isso, naquela época, era uma coisa realmente nova aqui e não era muito comum lá. No serviço do Merryl ele tinha vários tipos de fellows, inclusive tinha umfellow encarregado de fazer diálise. Certo dia, inesperadamente recebo uma carta do Merryl dizendo: “o de fellow que estava prá vir infelizmente não pôde chegar e analisando o seu curriculum você tem uma boa experiência em diálise. Você tem 2 meses prá decidir se vem ou não vem”. Eu não tinha bolsa, tinha 2 filhos pequenos na época, e em 2 meses fiz um esforço danado, consegui uma bolsa muito ruim, uma bolsa de US$340 por mês, imagina.

Dr. Sebastião: O senhor tinha quantos anos?

Dr. Emil: Isso foi em 1961, eu nasci em 1926

Dr. Istênio: 35 anos.

Dr. Emil: 35. Eu tinha 2 filhos pequenos e aí não dava prá levar. Tive que deixar meus dois filhos.

Dr. Sebastião: Foi sozinho?

Dr. Emil: Fui eu. Minha mulher foi depois de 3 meses. Ela conseguiu

visto de imigrante e conseguiu trabalhar lá numa companhia de seguros e este fato aumentou um bocadinho a minha bolsa que era de 340 dólares. Era irrisório. Aí ela ganhava mais do que eu, somando os dois dava viver lá e passei um ano e pouco no serviço do Merryl. Depois eu fiz um giro em áreas de nefrologia, fui prá Minneapolis e prá um outro serviço em Washington.

Dr. Sebastião: E durante esse um ano e meio os filhos ficaram aqui no Brasil?

Dr. Emil: Ficaram aqui. E naquele tempo prá você fazer um telefonema…

Dr. Sebastião: E qual era o esquema? Com quem eles ficaram?

Dr. Emil: Eles ficaram com a minha sogra. Minha sogra e meu sogro, mas o mais importante é que naquele tempo o telefonema prá São Paulo era no mínimo dez horas e você não sabia nunca quando ia ser chamado.

Dr. Sebastião: No mínimo dez horas de que?

Dr. Emil: De espera. Lá também o telefone não era brilhante. Se você quisesse falar em São Paulo você tinha que ficar o dia inteiro esperando e sabia que durante dez horas não saía o telefonema.

Dr. Sebastião: E durante esse um ano e meio o senhor veio alguma vez ao Brasil?

Dr. Emil: Nunca. Eu não tinha nem dinheiro. Durante um ano e meio passei lá. É uma das coisas que até agora os meus filhos reclamam um pouco (risos).

Dr. Sebastião: Eles tinham quantos anos na época?

Dr. Emil: Um tinha cinco o outro tinha quatro. Sebastião: E um ano e pouco quando retornou?

Dr. Emil: Quase que eu era um desconhecido pra eles? Nessa fase é meio complicado, eles esquecem fácil.

Dr. Décio: Veja que hoje com bolsa de US$ 2.000 muita gente ainda não vai?

Dr. Emil: Veja o esforço. Eu aproveitei muito. Acho que foi uma coisa muito importante na minha vida, eu tive um bom relacionamento com Dr. Merryl. Realmente, muito amigo e vivia apostando comigo uma caixa de cerveja brasileira pois desde aquele tempo, eu era muito contestador. Eu via todos os pacientes espanhóis que ele recebia porque a clínica do Merryl vinham muito da América do Sul e ele não falava nada de espanhol. O Dr. Merryl falava muito bem francês, porque tinha estado na França. Ele foi um dos líderes que marcaram bem a minha vida. Eu acho que o Merryl foi uma das coisas importantes na minha formação nefrológica. Eu o considero talvez o maior nefrologista que já tivemos, porque abrangia todas as áreas de nefrologia, ele era um hipertensólogo, ele era um glomerulopata, ele fazia insuficiência renal aguda. Ele criou o sistema de diálise, era um dialisador dos Estados Unidos, a divulgação da máquina foi pelo Merryl. Ele escreveu um livro bonito sobre insuficiência renal aguda, um livro histórico.

Dr. Istênio: O senhor vê na nefrologia mundial alguém, talvez mais dois ou três nomes no nível do Merryl e que o senhor considera pilares da consolidação da especialidade?

Dr. Emil: Eu acho que sim. Eu acho que Hamburger, na França, foi um sujeito espetacular. Ele, realmente, dentro de um país muito menor, criou. Escreveu um belíssimo livro de nefrologia e teve um nível altíssimo de criação. Ultimamente, talvez o Eberhart Ritz reuna qualidades de um nefrologista integral, porque é importante ter a abrangência de conhecimentos. O Eberhart Ritz é um sujeito de projeção, pelo menos européia. É editor-chefe do Clinical Nephrology, Dyalisis and Transplantation. É um sujeito que fala muito bem inglês, ele tem muito acesso a comunidade internacional.

Dr. Décio: E dentre estas pessoas que influenciaram sua carreira, o senhor citaria, além do Magaldi e o Merryl, mais alguém?

Dr. Emil: Sim. O Magaldi foi um pilar na minha formação e o outro, um urologista, foi o Geraldo Campos Freire. Geraldo Campos Freire me influenciou muito, primeiro porque ele foi um sujeito que me apoiou desde o começo. O Geraldo já era professor titular, quando eu era residente. No entanto, ele fazia questão de me colocar em todas as discussões de casos. Ele tinha uma personalidade extremamente marcante e era sujeito a muitas críticas de um lado e a elogios de outro, mas era um sujeito inovador. Ele sempre aceitou as idéias novas. Ele nunca discutiu se aquilo era bom ou não, se é novo, se alguém quer fazer, vamos tocar, vamos fazer! Ele foi um sujeito empreendedor. O transplante de rim saiu, primeiro, porque eu estava vivenciando isso lá fora; segundo, porque ele se interessou em fazer. Naquela ocasião, quando surgiu o primeiro transplante, não tinhamos a menor idéia de sistema de incompatibilidade. Para nós, isso era um mistério, para os americanos também. Então, o grande problema do transplante era o boato cirúrgico em si. Durante muitas semanas, mais de 10 semanas, nós nos reunimos aqui na urologia, à noite, prá cada um trazer um artigo, que eram poucos sobre transplante, sobre técnica cirúrgica e nós programávamos o transplante de maneira detalhada. Naquela ocasião, como urologista não tinha experiência em cirurgia vascular, o Virginelli, não sei se vocês conhecem, ele trabalha ainda no Incor, foi convidado prá ser o cirurgião vascular de transplante. Então, era um grupo com anestesistas, com cirurgião vascular, com todos os urologistas daquela época. Como nefrologista eu era o único, por uma razão simples: o Professor Magaldi e o Professor Geraldo Campos Freire não se davam bem. O Geraldo Campos Freire era mais da direita o Professor Magaldi era um pouquinho da esquerda e chegou a ser preso duas vezes por causa do AI 5,… e foi a fase dramática do Brasil, governo militar… então eles não se davam politicamente e nem pessoalmente. E o Magaldi era uma pessoa tão extraordinária, mas tão extraordinária, que apesar de eu trabalhar com ele desde o grupo acadêmico, não fez restrição a que eu fosse trabalhar no transplante com o Professor Geraldo. Ele achou que Medicina era uma coisa, política era outra coisa. E daí eu passei a fazer parte da urologia, trabalhando na áreade transplante.

Marli: Professor, como foi esse início do Programa de Transplante? Existia uma listinha, vocês escreviam lá no livro, quer dizer, como é que era?

Dr. Emil: O início foi assim: escolhemos um doente que apareceu no consultório e eu disse que a solução dele era fazer transplante. Eu tinha vindo dos Estados Unidos há pouco tempo e sabia que lá podia se resolver. O doente disse: ” eu não quero ir prá lá, quero fazer aqui”. Eu disse: “Nós nunca fizemos transplante aqui”. Ele disse: “eu quero fazer com você”. Eu falei: “mas eu não sei fazer transplante ainda”. O paciente respondeu: “Então o senhor vai dar um jeito de aprender a fazer”. E daí foi quando eu perguntei ao Professor se nós não podíamos criar um sistema de transplante. O início foi esse, não tinha lei, não tinha nada que permitisse fazer ou que não permitisse fazer. O transplante renal veio muito antes da legislação, que foi feita 3 anos depois. A legislação só veio depois do transplante de coração. Quer dizer, a legislação apareceu em 68, o primeiro transplante renal foi feito em 65. Agora, depois, um ano depois, o Estevam já trabalhava conosco, era residente, ele e o Dr. Lauro, que agora é cirurgião. Os dois estavam conosco e talvez por não gostar mais da cara do Estevam eu disse: “Estevam você vai trabalhar com grupo de transplante”. Ele era menino! (todos olham espantados para o Estevam, não acreditando que ele pudesse ter sido, um dia, uma criança!)

Dr. Estevam: Foi junho de 65. Eu era R1.(tentando se explicar)

Dr. Emil: R1, e nessa ocasião nós começamos a fazer outros transplantes. A gente fazia pontuação para escolher o receptor, isto é, se era casado, se era solteiro, se tinha um pouco de QI mais aceitável, aceitar as drogas, o tratamento e tinha uma pequena comissão de elementos não ligados ao transplante que se reunia no anfiteatro e a gente expunha os eventuais candidatos e a comissão escolhia: “O próximo vai ser este”. Tinham razões de ordem econômica, familiar: tinha filho, não tinha filho. Hoje a seleção é usada na base do tempo de diálise, o que não é uma maneira correta de pontuar. Mas, atualmente começamos a fazer uma pontuação melhorzinha. O Dr. Décio Pena era então o presidente dessa comissão de escolha.

Dr. Sebastião: E esse transplante, o primeiro, como é que foi?

Dr. Emil: Tivemos uma sorte imensa Sebastião, porque ele era idêntico, não havia incompatibilidade! Quer dizer, vários anos depois nós testamos ele e o irmão e eram idênticos! É uma das coisas curiosas esse primeiro transplante. A verdade é que a arteriografia do doador… bem, no ato do transplante, na hora que abriu o doador, disseram: “tem duas artérias”, aí foi um pânico geral. Eu estava lá com os tubos de ensaio prá colher o primeiro xixi dele. Nós estávamos todinhos preparados para fazer anastosomose de uma artéria mas de duas artérias ainda não. E aí eu falei: “melhor fechar e desistir”. Aí o Rogério disse, eu vou tentar fazer duas anastosomoses

Dr. Sebastião: Logo no primeiro?

Dr. Emil: O primeiro, fez duas anastomose. E esse transplante, como a gente não fazia bem história digestiva prévia, não sabia direito, ele tomou cortisona por 13 dias. Só 13 dias de corticoides, porque no 13º dia houve uma hemorragia digestiva, (e a gente não tinha naquele tempo nenhum desses bloqueadores de H2) e também não usava hidroxi de alumínio… e veio uma hemorragia digestiva violenta. Então nós suspendemos corticóide, não tomou mais cortisona pro resto da vida. Ele tomava só azatioprina que eu tinha trazido dos Estados Unidos, não tinha azatioprina aqui ainda. Eu trouxe de lá, quando vim.

Dr. Sebastião: Mas e a agitação?

Dr. Emil: A agitação foi grande.

Dr. Sebastião: Dentro do hospital?

Dr. Emil: Depois. Foi secretamente. O transplante foi feito sem ninguém saber. Porque a gente nem sabia como iria ser, se ele ia morrer. Então foi em segredo e no dia seguinte a televisão Bandeirantes noticiou, Prof. Geraldo deu uma entrevista e as coisas tornaram-se públicas. Mas esse doente, Bastião, tomou azatioprina só, e viveu onze anos com o rim perfeito sem nenhum problema. Naquela ocasião nem sabíamos da existência do vírus B mas ele tinha o vírus B e ele morreu de hepatoma, onze anos depois. De modo que foi um caso de sorte porque deu tudo certo no primeiro transplante.

Dr. Sebastião: E foi o primeiro transplante no Brasil?

Dr. Emil: Foi o primeiro transplante no Brasil.

Dr. Sebastião: O pessoal do Rio… eles reinvidincam alguma coisa….

Dr. Emil: Eles falam, nunca publicaram, eu não sei se o transplante saiu ou não saiu.

Dr. Estevam: Saiu num jornal.

Dr. Emil: O doente deles não deve ter urinado. Realmente, o primeiro transplante realizado com sucesso no Brasil foi aquí. Antes, aqui mesmo no HC, o Dr. Israel Nussenzveig chegou a colocar um rim na região inguinal de um doente. Pegou a região inguinal, femural e a pele. O paciente morreu, nunca urinou, nada disso. Foi uma tentativa. Quer dizer, tentativa podem ter ocorrido, mas com sucesso eu desconheço. O primeiro transplante realmente de sucesso que urinou, viveu, teve a vida normal durante dez anos, onze anos, porque morreu com hepatoma com onze anos, foi aquí no HC.

Dr. Sebastião: Foi em 1965?

Dr. Emil: 1965. Um pouco antes do Estevam começar a trabalhar conosco. (A fita do gravador termina e depois de alguns segundos, voltamos a gravar normalmente. Durante o intervalo o Estevam fez um breve histórico sobre o inicio do seu trabalho com Dr. Emil. Não temos gravado esta seqüência.)

Dr. Emil: É, terminamos o ano com 4 transplantes em 1965.

Dr. Istênio: Então, são 33 anos de parceria com o Estevam.

Dr. Emil: Estevam, você falou uma coisa curiosa em diálise e eu me lembro de um fato, que ele faz parte da história da Nefrologia e eu gostaria de deixar registrado aí pro Bastiao e o Décio. Quando eu voltei dos estados unidos, em 62, nós estávamos fazendo diálise peritoneal crônica. Estávamos começando a fazer diálise peritoneal, porque só naquela ocasião começou a surgir os primeiro shunts, shunts de Scribner. Eu lembro que passei tanto tempo trabalhando em shunt! Eu não conseguia acertar o shunt, não funcionava. No grupo do Dr. Merryl o shunt nunca funcionou! Então, o crônico fazia peritoneal. Quando cheguei, o meu primeiro Congresso Brasileiro de Nefrologia no Rio de Janeiro, eu apresentei 3 casos de pacientes renais crônicos mantidos em vida por 6 meses. Um deles, eu lembro agora, era muito jovem e quando a gente também é muito jovem se liga muito afetuosamente ao doente. O doente disse: “Doutor, eu preciso de 6 meses”. Eu disse: “você vai viver 6 meses”. Então, fizemos diálise peritoneal, não tinha muita possibilidade, não funcionava, muitas vezes, porque não tinha instrumento que deixasse você repetir a diálise. E eu levei pro Congresso: Diálise Peritoneal Crônica: paciente mantido vivo por 6 meses. Quando eu apresentei o trabalho, O Doutor Garcia, Professor Garcia do Rio de Janeiro, era um dos líderes da nefrologia carioca, levantou e fez uma catilinária violenta e me deixou desse tamanho (aproximando o polegar do indicador), porque disse que eu estava fazendo um procedimento profundamente anti-ético e que ele lamentava, pois eu era um jovem nefrologista e já começava minha carreira fazendo aquilo tudo anti-ético. Disse ainda que eu estava desafiando a vontade Divina e que doente renal crônico tinha que morrer, não tinha que fazer diálise

Dr. Sebastião: E como é que o senhor respondeu?

Dr. Emil: Não respondi. Eu fiquei absolutamente parado! A impressão que eu tinha é que estava fazendo uma coisa boa, mas lhes relatei isto só prá mostrar como mudou a ética em Medicina. Naquele tempo acharam que era anti-ético fazer diálise e prolongar a vida!

Dr. Estevam: Uma coisa importante que eu acho que o Dr. Emil é a inovação e ele implementou no transplante algumas coisas que o Starch estava implantando nos Estados Unidos na época. O Starch era uma figura brilhante, era um cirurgião brilhante. Então, por ordem do Dr. Emil, nós começamos a fazer aqui soro antilinfocitário. Nós tirávamos linfa do túbulo torácico. Eu fiz minha tese de doutorado com esse trabalho. Eles injetavam nos cavalos, o laboratório ISA, que o Osvaldo Ramos era diretor, esse soro era purificado, era testado pelo NelsonMendes e em seguida era dado ao paciente. Isso nós usamos em uns 30 doentes e apenas muito mais tarde começou a se fazer o mesmo nos Estados Unidos. Na época não deu certo, nós também paramos devido às impurezas, mas só depois de uns 10 anos que grandes laboratórios refizeram. Isso é uma coisa fantástica, nunca ia imaginar! Foi feito aqui, tudo isso na década, no começinho de 70. Outra coisa que ele fez ele foi criar na Unidade deTransplante Renal uma clínica nefrológica. Nós tínhamos nossa hemodiálise e tínhamos a enfermaria de transplante e o ambulatório de transplante. Então, era uma clínica separada, que aí tinha juntado a primeira com a segunda numa só. Só agora, quando faleceu o Gilberto (Menezes de Goes, ex- Professor de Urologia da USP), é que a nefrologia juntou todas as diálises, acabou a diálise do transplante. Dr. Emil criou também o laboratório específico para o de transplante, porque o transplante era muito complicado.

Dr. Emil: Quer dizer, o transplante saía daqui completo. O Nelson fazia imunologia.

Dr. Estevam: E se vocês forem ver na história de transplante do Brasil, depois que a gente já estava com tudo isso andando, alguns centros começaram a fazer transplante como nós, em 70.

Dr. Sebastião: Eu queria aproveitar um comentário do Estevam: ele disse que o senhor era muito bravo…

Dr. Emill: É uma opiniaõ mais ou menos difundida. Mas eu não sei… eu nunca me senti muito bravo…(risos)

Dr. Sebastião: E porque o senhor acha que o tinham como “bravo”?

Dr. Emil: Eu acho que é porque eu herdei alguma qualidade da minha mãe italiana, falava … então pode ser um pouco enfático na maneira de falar, talvez um pouco disciplinador na questão de horário. Prá mim, horário é sagrado, de vez em quando eu brigava um bocadinho com o sujeito que não chegava no horário. Olha, quem dizia isto era o Marcelo: “esse indivíduo e um indivíduo que briga, faz tanta gente chorar – isso eu não sei -, mas é padrinho de casamento na maioria dos residentes”.

Dr. Décio: Abraça todo mundo.

Dr. Emil: Então, eu tenho um monte de afilhados, são ex-residentes que no começo talvez tivessem me odiado, não sei…..

Dr. Istênio: Muita gente acha que o senhor amaciou depois que se tornou avô. (risos). O neto mais velho do senhor tem quanto anos?

Dr. Emil: Isso não é verdade! Ela tem 10 anos.

Dr. Estevam: O Dr. Emil tem uma característica: nós íamos muito em Congresso juntos. No Brasil, ele não tolerava trabalho mal feito e mal apresentado! Então, o indivíduo que apresentasse o trabalho com falhas e mal elaborado ao acabar a sessão, ele levantava e questionava bastante (e nisso ele melhoru muito nos últimos anos). No começo era terrível. Quando o indivíduo era jovem e olhava o Sabbaga na platéia ele pensava:”Meu Deus!!!”.(risos)

Dr. Sebastião: O senhor lembra de algum momento destes… assim, algo que ficou guardado?

Dr. Emil: Eu não sentia que eu era assim, realmente!

Dr. Décio: Ele passava visita e se faltava algum exame saía prá buscar o resultado. Ia na anatomia patológica .. eu me lembro uma vez que ele foi comigo, chegou lá estava tudo fechado! Era quase hora do almoço. Ele bateu na janelinha…. o pessoal estava lá dentro, encostado, relaxado, ele bateu e ouviu uma resposta: deixa o papel na janelinha! Ele respondeu: Aqui é o Dr. Emil Sabbaga!!. O pessoal fez então o maior barulho lá dentro (risos).

Dr. Emil: E você, Istênio, quando trabalhou aqui você sentiu que eu era desse jeito ?

Dr. Istênio: Não. O senhor já era avô quando eu vim prá cá (risos). Brincadeira, o senhor era muito eficiente e exigia muita eficiência.

Dr. Emil: Eu vou falar a mesma coisa. Eu nunca me senti muito bravo. Eu talvez fosse um pouco exigente, exigente com horário de chegada do pessoal. Talvez eu fosse muito enfático na maneira de falar.

Dr. Sebastião: Deve ser o timbre da sua voz. (risos)

Dr. Emil: É, o timbre da voz e o espírito da minha mãe italiana. (risos)

Minha mãe tem 96 anos de idade e continua brava. Ela briga quando tem que brigar. Eu herdei um pouco isso em vez de herdar do meu pai. Ele era um sujeito muito calmo, tranquilo, infelizmente não está conosco mais. Mas dele eu não herdei nada!

Dr. Décio: Professor, o senhor sempre dava importância à eficiência? Eu me lembro que quando a gente era residente e ele passava visita, eu precisava ter todos os exames!!! Como é que é esse negócio de visita notransplante? Como é que era a visita no transplante?

Dr. Estevam: As visitas, realmente, para os novos residentes que não o conheciam, eram terríveis! Eles tremiam os pés. É o jeito dele.

Dr. Estevam: Outro pioneirismo do Dr. Sabbaga foi a introdução no Brasil do doador não relacionado. Dr. Emil fez o primeiro não relacionado com doador mulher para marido em 71. Então, durante quase duas décadas foi muito criticado por essa conduta. Ele mostrou que o não relacionado era muito semelhante ao relacionado e muito superior ao cadáver. Só nos últimos três ou quatro anos, quando a literatura estrangeira começou a perceber que o não relacionado era um doador que não pode ser desprezado, é que voltou-se a dar valor a ele e muitos centros voltaram a fazer não relacionado. Então, isso é uma grande inovação no transplante renal do doador. Outra coisa que ele introduziu também foi a chamada transfusão doador-específico. Fez um trabalho pioneiro também no Brasil mostrando sua eficiência e possivelmente hoje tem casos que essa metodologia leva a tolerância… Então são coisas marcantes na sua carreira, de fazer coisas novas, coisas diferentes, apesar de muita críticaviolenta que existiu quer de brasileiros, quer de sul-americanos na época.

Dr. Sebastião: Professor, como eram essas críticas ? De onde vinham?

Dr. Emil: É uma coisa curiosa. Uma das coisas que diziam é que se fizesse transplante não relacionado eu deixava de fazer um programa eficiente de cadáver! Isso era uma mentira, porque quem mais fazia cadáver no Brasil éramos nós. O que eu achava é que transplante de doador vivo era sempre bem melhor que transplante de cadáver na sua evolução. Eu fiquei muito feliz agora no último Congresso de Transplante..O Estevam tava lá. Um dos destaques do congresso foi transplante de doador vivo não relacionado, havendo uma pressão pública prá que todo mundo fizesse e apresentaram durante a conferência principal um slide do Cécil que utilizou o nosso material prá mostrar os resultados de transplante no Brasil de doador vivo não relacionado. Prá vocês verem, as críticas anteriores não tinham base nenhuma. Os franceses faziam muita crítica porque diz que não era ético. Se existe alguém ligado ao marido é a mulher e a mulher ao marido. Doações entre cônjuges eram perfeitas ou doações entre amigos. Um dos primeiros transplantes que eu fiz aqui foi num garoto de 5 anos que era filho de um funcionário de circo. O pai e a mãe tinham tipo sanguíneo diferente. Então, seis empregados do circo disseram: “eu vou dar o rim pro menino!”. Não havia nenhuma comercialização naquilo porque eram sujeitos muito simples. Esse garoto tá bem até agora e ele teria morrido, tranquilamente. Então é preciso separar o que é comercialização e o que é doação de rim espontânea. E estou cansado de ver doação espontânea que não tem nenhum problema de comercialização na história. Eu sempre digo: “tenho que lutar é para omeu paciente”, ele tem que ser o objeto da minha atenção. Porque tenho que manter um indivíduo jovem ou casado-jovem, vários anos em diálise, esperando cadáver, se eu posso utilizar outro indivíduo para dar o rim prá ele? É um negócio que eu não entendo! Agora, graças a Deus, isso acabou! Depois que os americanos mostraram que é fundamental a doação de vivos não relacionados e que isso foi um tema especial do congresso, acabaram as críticas. E as críticas vieram de muita gente do Brasil. Eu me lembro perfeitamente que o doutor de Londrina foi um dos que mais me criticaram.

Dr. Istênio: O senhor criou e liderou os serviços de insuficiência renal aguda, diálise, nefrologia clínica, hipertensão, litíase, transplante, relação com obstetrícia, etc. Eu queria fazer uma pergunta de ordem pessoal. Qual dessas áreas fascina mais o senhor? Quando é que o senhor se empolga mais ao ver um paciente dessas diferentes áreas ? Ou não tem ? O senhor não vê isso ?

Dr. Emil: Eu tenho. E, curiosamente, não é transplante. É insuficiência renal aguda. Tenho um livro de insuficiência renal aguda de há muitos anos atrás.

Dr. Istênio: De 70.

Dr. Emil: A insuficiência renal aguda me lembra um pouco a obstetrícia. Pois você tem sempre a sustentação de que vai resolver o problema. O obstetra é um médico feliz, concordam comigo? Oncologista deve ser um médico triste. O obstetra deve ser um médico feliz porque o nascimento da criança é uma alegria prá todo mundo, ligam prá família, ligam pro médico, ele é tão cumprimentado. A insuficiência renal aguda também,quer dizer, quando você consegue tirar o indivíduo de uma situação grave e ele voltar a vida normal é uma vitória, não é? Então, eu acho que insuficiência renal aguda é uma coisa que me fascina bastante e ainda tenho muita atividade nesta área.

Dr. Sebastião: O nefrologista hoje no Brasil é feliz?

Dr. Emil: Eu vou te contar uma história: acho que nós éramos mais felizes antes. Eu concordo com você. A nefrologia precisa mudar um pouco, tenho imprensão que a nefrologia tem que sair um bocadinho da diálise crônica, acho que a nefrologia tem que deixar de ser especificamente diálise e ela tem que abranger outras áreas, acho que o nefrologista tem que aprender a fazer biópsia, fazer biópsia tem que ser uma função do nefrologista, tem que fazer ultrassom bem feito. Nós tamos tentando criar aqui, entre os residentes do terceiro ano, bons conhecimentos de ultrassonografia renal, porque fazendo bem ultrassonografia têm a chance de se desligar do radiologista em grande parte. Porque o que tá acontecendo com a nefrologia hoje é que nós estamos ficando muito subsidiados por outras áreas e nós estamos perdendo nosso terreno maior do doente de rim e hipertensão. Eu digo sempre que hipertensão continua sendo uma especialidade nefrológica. Então, não deve ser da cardiologia, porque a cardiologia vê consequências da hipertensão.

Dr. Décio: O senhor acha que o nefrologista tem se dedicado à hipertensão?

Dr. Emil: Eu acho que não. Eu acho que o nefrologista tem se dedicado muito a diálise, porque, Décio, a diálise até um certo tempo atrás, era uma fornecedora boa de dinheiro… podia-se ganhar dinheiro.. hoje já não é mais, mas ainda é solução prá nefrologista jovem, pois consultório prá nefrologista jovem é problemático. Acredito, com a mudança da estrutura dos convênios, etc. você passará a valorizar um pouco a consulta pro nefrologista fazer medicina mais integrada? Para que ele possa aprender aquilo que o Dr. Istênio falou sobre nefropatia de gestação (no JBN de Março)

Dr. Sebastião: Como é que o senhor viu essa história de Caruaru, essa confusão na nossa especialidade ? Como é que o senhor viu em termos de prestígio aqui dentro do Brasil em relação a nossa especialidade? Como é que o senhor analisa isso?

Dr. Emil: Caruaru foi um choque grande para os que não são nefrologistas. Simpósio nos Estados Unidos e um dos temas principais era Caruaru. Já havia essa publicação. Acho que a medicina no Brasil carece mais é de dinheiro. Por isso, que eu fico muito preocupado quando fazem críticas a alguns hospitais onde morreram crianças ou hospitais que morreram velhinhos. Vocês sabem, todos nós sabemos, da maneira como eles financiam, pagam os hospitais e eles não podem ter mais do que esses resultados medíocres. Agora, Caruaru não foi culpa dos médicos. Acho que os médicos não tiveram culpa nehuma na história. Eles confiaram muito na qualidade de água que os serviços da prefeitura lhes entregava. Se existiu falha é global, vinda do serviço de saúde do estado, entrega de água prá uma população dialítica que não pode receber aquele tipo de contaminação. Agora, vocês se recordam: uma das coisas bonitas é o trabalho de Ribeirão Preto, você viu? Saiu no último número da Dialysis Transplantation. É um trabalho tão importante que o editor da revista disse que passou na frente de todos os outros, em virtude da importância clínica dele. Mostra que os pacientes renais crônicos, em especial aqueles em diálise, não podem comer carambola, porque mata!!!. É igual em Caruaru: em vez de você dar água você dá carambola. O sujeito quando come fica com soluço violento ou morre …

Então, no fundo Caruaru é uma carambola na diálise, a água veio com toxina …

Dr. Istênio: Dr. Emil, eu queria explorar uma outra faceta da vida profissional do senhor, que é a medicina privada, o consultório. O senhor é um dos poucos exemplos de alguém que conciliou, com muito sucesso, essas duas pontas: uma vida universitária vitoriosa com um consultório de nefrologia ainda bastante frequentado. De onde o senhor vai levar mais saudades: das características do atendimento privado ou do universitário?

Dr. Emil: Istênio, ainda bem que essa conversa é entre nós, não é tão pública assim…(risos), mas eu vou te dizer: eu gosto muito mais da vida universitária. Acho que o consultório é uma sobrecarga emocional e física, pois a grande parte dos doentes tem problemas de ordem econômica e você não faz só medicina, você tem que fazer medicina mais (e até resolver) problemas sociais! Agora, a vida acadêmica é muito mais agradável e o exemplo mais típico disso é que eu estou aposentado já há quase dez meses e continuo vindo todo dia no hospital, porque isso aqui me agrada, se eu pudesse aposentar o consultório eu não voltaria mais lá, mas aqui eu volto.

Dr. Istênio: O senhor acha que o consultório entrou na vida do senhor mais como suporte financeiro ?

Dr. Emil: Suporte financeiro. Só. Eu acho que o que me traz prazer na medicina é discutir com os residentes, discutir casos, fazer visitas três vezes por semana.

Dr. Sebastião: Como é que o senhor vê a novidade, como é que o senhor assimila o novo trabalho? Qual a triagem? Como saber o que é importante? Como é que o senhor vai assimilando esse conhecimento ao longo do tempo? Como é que o senhor elabora essa seleção?

Dr. Emil: Eu acho que isso depende muito Bastião, da vivência! Como eu vivi muito intensamente nefrologia desde 1954, quando eu começei a trabalhar em nefrologia, até agora, adquiri a capacidade de selecionar, separar o joio do trigo, viver o que é importante e o que não é importante, o que é promissor no sentido de crescimento ou aquilo é um epifenômeno transitório. Mas, acho que é por causa da vivência! Tenho impressão de que são os meus 50 anos de nefrologia.

Dr. Décio: O senhor ficou no pronto socorro bastante anos?

Dr. Emil: Fiquei. Durante muitos anos trabalhei no pronto socorro, mais ou menos 20 anos. Isso me dá uma certa agilidade mental prá casos complicados, isso foi bom.

Marli: Existe uma política de saúde no Brasil?

Dr. Emil: Olha, eu acho que a medicina, em qualquer área: do progresso da medicina ou de tratamento de doente, é fundamental o dinheiro que se usa. A medicina tá bem num país rico, por exemplo, a medicina espanhola está crescendo, porque a Espanha cresceu. Hoje se tem bons nefrologistas na Espanha. A medicina italiana tá crescendo, porque a Itália cresceu. Então, em matéria de assistência à saúde, também é a mesma coisa. Quando a gente olha o Canadá, que tem 14% do produto interno bruto gasto em saúde e o Brasil que tem 3%, dá prá se ter noção da medicina que nós temos aqui? Se você fornecer mais dinheiro, você tem a medicina melhor. Então, medicina é ruim no Brasil porque o governo não se convence que precisa dar dinheiro. Eu acho que não é mudar ministro, ministro não vai resolver nada. Ele precisa aumentar o orçamento da saúde e se não aumentar o orçamento da saúde a medicina não melhora E quando se fala de melhor medicina, melhora tudo, melhora paciente, melhora a assistência pré-natal, melhora a assistência à criança e melhora o padrão do médico também. Inclusive, eu acredito que do ponto de vista ético você vai ter melhora Também. Ao remunerar melhor o procedimento, você impede o profissional de fazer, por exemplo, uma amigdalectomia duas vezes. Hoje, isto ocorre porque se paga uma porcaria aos medicos, e indiretamente, incentivam a fraude. O mesmo ocorre com outros procedimentos: não vai fazer cesária mais sem necessidade porque cesária dá mais dinheiro que parto normal. Então eu acho que melhora todo o conjunto da medicina, se você tiver uma medicina melhor financiada. Agora, eu acho que a medicina clínica americana é muito ruim viu Sebastião, tenho uma vivência boa nisso aí. Eles não são bons clínicos, são excelentes pesquisadores, mas talvez não tenham a nossa agilidade latina prá ver as coisas. Vocês sabem o que eles deram para o Sérgio Mota: azatioprina e ciclosfosfasmida. Então, o indivíduo que vem com a imunossupressão razoável de um mês prá cá e pega um processo de dispinéia intensa, quadro de falta de ar e febre, qual é o diagnóstico?

Dr. Istênio: Infecção ?

Dr. Emil: Deve ser CMV, citomegalovirus!

Dr. Istênio: Professor, agora nos fale um pouquinho de outro aspecto da vida do senhor. O senhor tem quantos filhos?

Dr. Emil: Dois, aliás tenho um. Agora tenho um. Morreu um com 35 anos.

Dr. Istênio: O mais velhor é…

Dr. Emil: O Jorge. Ele é médico oncologista. O outro não era médico, o outro era um executivo, trabalhava em empresas, era um rapaz muito inteligente, mas infelizmente tinha uma doença… isso vem das histórias: minha mãe é italiana e a mãe da minha mulher era italiana e ambas traziam, sem que nós soubéssemos, o traço da anemia de Cooley e eu e minha mulher recebemos o traço da anemia de Cooley também sem que soubéssemos. Quando nós tivemos esse garoto, ele tinha, então, Cooley Major. Desde os seis meses de vida tomava transfusão de sangue prá manter um nível razoável de hematócrito. E essa transfusão de sangue repetida levou a uma hemosiderose cardíaca. Ele teve que fazer um transplante de coração aos 35 anos e, como já tinha hemosiderose hepática, o transplante não correu bem e ele faleceu. De modo que, agora, só tenho um garoto que já não é mais garoto, já tem 40 anos, faz oncologia e é um rapaz de bom padrão. Ele fez 4 anos aqui de residência, dois em clínica médica, dois em hematologia e, então, foi para os Estados Unidos e ficou mais de dois anos em Boston.

Dr. Istênio: O senhor acha que o Jorge fez medicina pelo exemplo do senhor?

Dr. Emil: Olha, eu acho que ele fez medicina pela doença do irmão.

Dr. Istênio: Por isso fez hematologia…

Dr. Emil: Ele fez hematologia. Agora não é mais, mas eu tenho a impressão de que ele fez hematologia por causa da doença do irmão….

Dr. Istênio: O senhor gostaria que ele tivesse feito nefrologia?

Dr. Emil: Não. Eu acredito que não. Sabe porque não? Porque o Jorge é uma pessoa muito auto-suficiente, ele nunca seria um assistente meu. Ele nunca poderia dizer eu quero, eu faço isso porque o meu pai faz, ele é muito independente. Acho que por aí é melhor…

Dr. Sebastião: Professor, e essa doença do filho do senhor, foi descoberta quando? Logo no início?

Dr. Emil: Logo. Logo nos primeiros meses de vida começaram os sintomas. Um hematologista disse: olha, ele tem Cooley Major. Até os dois, três anos de vida era complicada essa situação. Não sabíamos porque ele era anêmico. Depois foi feito o diagnóstico e aí ele viveu muito tempo, foi um dos que mais viveram. Ele pertencia a uma sociedade, tem uma sociedade de Cooley aqui, e eles se reúnem.

Dr. Sebastião: Aqui no Brasil?

Dr. Emil: Aqui em São Paulo, principalmente, tem milhões de italianos e árabes. Eles têm muito isso. Eles têm uma sociedade, fazem reuniões mensais. Pouco tempo atrás uma moça tava grávida com Cooley Major, tinha mais de 28 anos. O Paulo era considerado um Cooley dos mais antigos do mundo. Ele morreu com 35 anos. Quando eu estive nos Estados Unidos em 61, eu fui conversar com um hematologista considerado de alto nível, contei a história do meu filho. Pedi a opinião dele e ele disse: “olha (nessa ocasião ele tinha 4 anos), você ficará muito feliz se ele viver até os 12”. Viveu até os 35.

Dr. Istênio: O senhor tem quantos netos ?

Dr. Emil: Duas netas.

Dr. Istênio: Duas netas ?

Dr. Emil: É, vou ter mais. Vou ter mais porque meu filho se separou e vai casar de novo com uma moça jovem e é claro que vai querer ter filhos de novo.

Dr. Istênio: O senhor gostaria que alguma das netas, ou o eventual neto que vem, fizesse medicina ? Se o senhor tivesse que sugerir, o que o senhor recomendaria ?

Dr. Emil: Eu acho que medicina é uma coisa curiosa, você só pode fazer se você gosta. Eu acho horrível o sujeito fazer medicina e não gostar da medicina, porque aí ele se suicida. Prá você fazer medicina, você tem que gostar da medicina, tem que ser íntimo. Medicina não pode ser imposta. Você pode fazer qualquer coisa sem gostar, mas medicina você tem que gostar, se não você não faz bem.

Dr. Istênio: Se o senhor não fosse médico, o que imagina que poderia ser ?

Dr. Emil: Se eu não fosse médico, uma das coisas que eu gostaria de

fazer era trabalhar em agência de propaganda prá criar, criar idéias novas em matéria de slogans ou programas. Eu acho que é profundamente criativa a propaganda no Brasil.

Marli: Professor, eu queria voltar um pouquinho no tempo. O senhor foi um dos fundadores da SBN, eu queria que o senhor falasse um pouquinho dessa sua época como presidente na SBN. Como é que era aSociedade nessa época? Tinha muitas dificuldades?

Dr. Emil: A Sociedade Brasileira de Nefrologia sempre teve duas facetas básicas: uma faceta científica, que se revelava nos Congressos, e uma faceta prática. Desde aquela época em que eu fui presidente, o programa fundamental da Sociedade era pagamento das diálises. Então, meu trabalho como presidente foi muitas idas a Brasília, mas muitas idas a Brasília mesmo! Até contei ao Istênio que já eu ia tanto a Brasília falar com os assessores do Ministério da Saúde (eu fiz uma palestra na Comissão de Saúde na Câmara, todos os médicos que são deputados, tive que fazer uma exposição lá sobre CAPD) mas era tanta ida que o Ulisses Guimarães me cumprimentava como se eu fosse um deputado. Eu entrava: como está o senhor ? Eu o via seguidamente. Na minha presidência foram muitas idas a Brasília e voltas a São Paulo discutindo problema de diálise.

Dr. Istênio: O senhor não acha que a SBN, diante da dualidade entre a promoção científica e a face sindical, já tem maturidade suficiente para se compartimentalizar definitivamente ?

Dr. Emil: Eu acho que sim. Esse setor da SBN que se chama diálise e transplante tem que ser um setor sindical. Tem que ser um setor que tenha lobby, precisa ser profissional, pois nós somos, na SBN, amadores. Nosso vice-governador é médico, tem uma porção de deputados médicos, tem senadores médicos, então temos que nos profissionalizar prá fazer como a Associação Médica Americana, a Associação Americana tem um lóbi poderoso no Congresso. Poderoso e a gente tinha que fazer isso, senão nós não caminharemos….

Marli: E a Associação melhorou ou piorou de lá prá cá? de 82 ?

Dr. Emil: Eu acho que piorou.

Marli: Piorou?

Dr. Emil: Eu acho que sim. Primeiro, porque a mídia faz muita crítica da diálise, ela não é bem informada, ela coloca o médico dialisador como indivíduo explorador do povo, o que não é verdade. Eu gostaria que as outras profissões fizessem o que a nefrologia faz. Porque a nefrologia, na maior parte das vezes, dá muito de si ao doente por pouca retribuição de volta. Eu me lembro de uma pequena atividade de diálise que eu tinha com o Estevam. Eu me lembro, muitas vezes eu pagava com meu dinheiro prá ter a diálise funcionando, porque o que eu recebia não dava. Então, eu duvido que algum engenheiro ou algum advogado faça isso. Duvido mesmo. Acho que nós precisávamos ter um pouco de assessoria de imprensa prá dar um pouco mais de prestígio para a SBN. Ela age numa área crítica: o indivíduo que caminha prá morte, ou que vai precisar de transplante, ou que vai prá diálise crônica ou aguda e tem áreas de interesse público como hipertensão. Eu acho que uma assessoria de imprensa, não uma assessoria do médico, assessoria da Sociedade, institucional…

Marli: O senhor entende que as críticas acontecem por falta de conhecimento mesmo…

Dr. Emil: Eu acho, porque a mídia não é bem informada.

Marli: …do trabalho da sociedade.

Dr. Istênio: O senhor tem algum hobby ? Nas horas vagas, o que o diverte ?

Dr. Emil: Tenho. Eu gosto de duas coisas: de futebol (assisto a todos os “futebois” possíveis) e de jogar tranca.

Marli: O senhor vai ao estádio?

Dr. Emil: Não. Eu vejo na televisão. O estádio é muito trabalhoso, você não tem lugar prá sentar. você não tem lugar prá estacionar.

Dr. Sebastião: O senhor tem um time?

Dr. Emil: Tenho, sou corintiano roxo.

Dr. Sebastião: O senhor falou várias vezes na sua mãe. Ela veio da Itália? Eu queria que o senhor comentasse como é que foi esse núcleo familiar.

Dr. Emil: Ela é filha de calabreses, ela é brasileira, mas trás toda uma tradição dos sulistas da Itália, aquele italiano duro, imigrante..

Dr. Sebastião: Mas… e o sobrenome Sabbaga?

Dr. Emil: Sabbaga é do meu pai. Meu pai veio pro Brasil com 14 anos de idade, coisa que eu duvido que alguém faça hoje em dia, não tem a menor condição. Sai do Líbano, ele era libanês, e vem prá cá. Chega no Rio com um par de libras esterlinas e roubam as libras esterlinas dele no Rio de Janeiro… aos 14 anos de idade, sem falar português, e sobreviveu, é uma coisa fantástica? Sobreviveu, criou uma estrutura familiar razoável, não ficou rico mas ficou razoável, aqui em São Paulo.Chegou no Rio, porque os navios chegavam no Rio nessa época, foi primeiro pro Paraná, depois veio prá São Paulo, montou uma serraria de madeira e chegamos a ter um padrão de vida razoável… educou os filhos, eu tenho duas irmãs, uma é casada até com o ex-Diretor desse hospital.

Dr. Sebastião: São três irmãs?

Dr. Emil: Duas irmãs e eu. Ele era um sujeito muito tranquilo, ele era um árabe com temperamento oposto ao da minha mãe. Papai morreu com 70 e poucos anos e minha mãe tá viva ainda com 96, tá lúcida, absolutamente lúcida e discute política.

Dr. Sebastião: E por falar em política, qual é a sua posição político-partidaria ?

Dr. Emil: Não é a do Istenio. Istênio é petista. O Istênio tem uma atenção especial pelo PT, mas acho que ele não é petista. Meu filho também pensa assim.

Marli: É simpatizante.

Dr. Emil: Simpatizante do PT, mas não é petista. Eu acho que nós temos um presidente excepcional que é o Fernando Henrique Cardoso, o atual presidente, ele realmente preenche minhas aspirações, meus desejos de como é um presidente. Ele talvez não seja enérgico como eu quisesse que ele fosse, eu gostaria que ele fosse mais, isto é, gostaria que ele tivesse menos jogo de cintura, mais energia, mas ele é um sujeito que representa o Brasil de maneira adequada, fora, um sujeito inteligente. Foi de esquerda e ele repete a história de que quem não for de esquerda até os 18 anos é quem não teve coração, quem continua sendo é porque não tem inspiração. Então, ele foi de esquerda, não é mais. O governo não é publicamente de esquerda.

Dr. Sebastião: O senhor não põe a mão no fogo não, não é? (risos)

Dr. Emil: Eu não ponho não, a conduta… ele tolera um bocadinho demais esse MST que eu não aguento. Eu gostei muito, no passado, do Jânio e achei que ele foi um bom governador em São Paulo e foi um bom presidente

Dr. Estevam: Honesto?

Dr. Emil: É, com bastante pulso?

Dr. Sebastião: E em São Paulo?

Dr. Emil: Em São Paulo eu com certeza, nós estamos em família, não votaria nunca no Covas. Acho que o Covas acabou com a segurança pública, acabou com a medicina em São Paulo, foi muito ruím, o hospital foi obrigado a fazer, você deve ter visto aí, uma sessão de convênios. O hospital é um hospital público, deveria atender a população. Agora, ter uma porção de convênio, não vão conseguir ninguém, porque deixou de ter dinheiro. Então, não votaria nele, eu voto de olho fechado, eu gosto, apesar de tantas críticas de que ele é ladrão, roubou, etc. eu acho que ele é um sujeito empreendedor. Eu vivo na minha casa muito mais tranquilo, nos túneis que ele fez. Eu gostaria do Maluf na presidência. Mas eu sou muito mais ligado ao PSDB do que a outro. Eu acho que esse partido com a postura atual ficou um pouco mais tolerável?

Dr. Décio: Professor, prá finalizar, poderia apenas comentar um pouquinho a Unidade de Transplante, os Assistentes ? Como é que o senhor vê o futuro da da nefrologia ?

Dr. Istênio: Primeiro da nefrologia de modo geral e depois particularmente do transplante.

Dr. Emil: Uma vez fizemos uma discussão sobre isso aqui, eu acho que a nefrologia é uma especialidade que precisa ser mais abrangente prá ela sobreviver, não pode ficar muito restrita à diálise, ela tem que crescer em outras áreas e o transplante vai ser daqui por diante sempre um sucesso, melhor trocar uma peça velha por uma nova do que tentarconsertar a velha. Eu acho que aqui na Unidade de Transplante, quando eu começei, mesmo o Estevam – que deve ser uns 15 anos mais moço, talvez seja mais – eu fui juntando gente mais jovem, mas depois que houve mudança no sentido administrativo aqui, a minha posição no hospital acabou. Eu era chamado funcionário GLF, isso desapareceu, não tem mais, então quando eu me aposentei eu não tive substituição e foi encerrado a carreira, de modo que ninguém entrou no meu lugar. O que eu desejo é que tragam para a Unidade de Transplante indivíduos pelo menos cinco anos mais jovem que o ultimo que esta lá, prá dar uma espécie de progresso, se não o conjunto envelhece… e quando o conjunto envelhece fica muito ruim. Eu to sentindo isso, que a Unidade hoje tá envelhecendo, porque os outros que estão aí, talvez o Elias Davi Neto seja mais jovem, mas o resto já tá numa faixa etária um pouco maior, sem aquele entusiasmo do jovem, porque é o jovem que faz a medicina crescer, é o entusiasmo do sujeito que é curioso. Eu fiz transplante com 30 e poucos anos, se eu tivesse 50 não teria feito. Então, precisa ter o entusiasmo do jovem, de achar que o futuro tá muito longe e ele tem muito tempo prá chegar lá. Agora, o indivíduo com 60 anos, ele já não tem mais entusiasmo, então a Unidade de Trasnplante… se ela não se reformular e não colocar gente jovem lá dentro, eu tenho impressão que o futuro não será brilhante.

Marli: Professor, mas esses mais novos não estão na Unidade porque não existem…

Dr. Emil: Não! Existem. É porque não tem mais chance de entrar. O Dr. Egídio Júnior é um rapaz que trabalhava comigo desde o começo, eu gostava muito dele – gosto ainda – ele começou comigo fazendo diálise na área de transplante. Ele fazia uma sessão de diálise como o Estevam. Ele fazia parte da Unidade de Transplante. Bom, como ele vive mais diálise que transplante, era mais lógico ele ficar ligado a área de diálise do hospital e foi o que aconteceu, ele se deslocou do transplante e passou a trabalhar na diálise. Abriu uma vaga? Abriu. Foi preenchida? Não, não foi preenchida porque a política do Governo do Estado hoje é não preencher vaga é sim diminuir o número de funcionários. Então, eu não posso mais colocar gente jovem, como eu gostaria de colocar na Unidade se eu ainda fosse o chefe. Agora, o chefe é o Estevam, eu tenho certeza que o Estevam também gostaria de ter um jovem lá, não é ? Quer dizer, renovar o espírito de trabalho, senão o grupo todo envelhece ao mesmo tempo e isso é ruim. Muito ruim.

Marli: Então, não é por falta de especialistas

Dr. Emil: Não é por falta de candidato, não. Temos gente excelente. O que está faltando é oportunidade. Temos gente excelente perdendo tempo aqui, alguns vão embora, outros viajaram. Este é um indivíduo que eu gostaria que trabalhasse comigo (apontando para o Istênio), mas foi prá Brasília, mas ele está bem situado, tá vinculado à Universidade de Brasília. Mas, tem gente que não vai prá Universidade, mas tem qualidades espetaculares, o que eu posso oferecer prá ele? Nada. Eu tenho impressão que o Décio tá enfrentando o mesmo problema que eu, dizendo que você não pode juntar mais a juventude excelente que você vê, que tem qualidades, porque não tem como preencher.

Dr. Istênio: O senhor acha uma parceria entre a universidade pública e a iniciativa privada poderia viabilizar essa…

Dr. Emil: Eu acho que seria ótimo. Eu acho que se a gente tivesse uma associação, tivesse alguma empresa interessada em estimular tantas áreas e financiasse certos projetos.

Marli: Tem algumas escolas em que isso acontece bastante.

Dr. Istênio: No Brasil, não há uma experiência assim.

Dr. Emil: É, não é, o Brasil não tem experiência nisso.

Marli: Acho que algumas escolas da USP começaram

Dr. Emil: Mas não na área médica.

Marli: Não, na área médica não.

Dr. Emil: Na área industrial sim. Na área de engenharia.

Marli: Área tecnológica.

Dr. Emil: Área tecnológica sim, área médica não.

Dr. Décio: Só prá finalizar, eu queria contar uma historinha prá ver se o Dr. Emil lembra, porque, essa história de dizer que o Dr. Emil era bravo só na enfermaria… mas ele era com os pacientes também. Foi sempre muito exigente…eu não sei se ele lembra, mas quando eu era residente, nós fomos fazer ambulatório e ele tinha muitos pacientes com hipertensão…

Dr. Emil: É, ambulatório de hipertensão.

Dr. Décio: … e o Dr. Emil fazia todo mundo perder peso, essa história de tratamento não medicamentoso que hoje virou moda, primeira etapa, etc. Ele fazia isso com todo mundo e dizia que tratar hipertensão é tratar obesidade, fazer as pessoas perderem peso. Daí, um dia no ambulatórionós recebemos um paciente que ele já tinha visto uma vez, e disse: “o senhor está acima do peso, precisa perder pelo menos 15 quilos!. Volta daqui a três meses com 15 k a menos”. E o paciente voltou, obviamente não tinha perdido nada, ao contrario, ganhou alguma coisa. Dr. Emil disse: “o senhor tá aqui, o senhor não perdeu nada de peso, o senhor tá perdendo seu tempo eu estou perdendo meu tempo, assim não dá”. Ficou bravo com o paciente. E eu ali quietinho, olhando, inclusive, os exames. Na época era rotina fazer urografia excretora nos pacientes e este paciente específico tinha uma calculose. Ao ser apresentado o Raio X para o Dr. Emil, ele olhou a chapa, chegou pro paciente e falou: “o senhor é um gordo de sorte, vou continuar tratando do senhor” (risos)

Dr. Emil: Eu não me lembro disso não.

Dr. Sebastião: Professor, eu vejo que o senhor acaba de publicar aí no Nephron de…

Dr. Emil:…. novembro. Novembro, o aceite. É de abril de 98.

Dr. Sebastião: Testemunhei aqui a vibração do senhor com essa publicação.Publicar é só prá quem tá dentro da Universidade ? O senhor achaque essa cultura de publicar um caso, de poder estar sempre participando, isso pode ser estendido a todos?

Dr. Emil: É, eu acho que isso é importante. É importante prá formação técnica do médico, porque quando você publica um caso (é o que eu digo sempre, é importante vocês participarem dos Congressos Brasileiros,vocês vêm o que o sujeito faz, participam do que os outros estãofazendo) quando você publica um caso, o mais importante da publicação é aquilo que se chama de revisão de literatura. Porque se aprende muito fazendo revisão da literatura, então eu acho que o

médico do dia a dia, mesmo fora da a universidade, tendo a oportunidade de ter um ou outro caso interessante que ele gostaria de rever, se ele tiver curiosidade. Hoje, computador é igual a máquina de escrever, medline, aquelas coisas todas? Eu acho que não seja obrigatória a universidade. Eu acho que pode, aumenta muito a formação técnica do profissional. Eu acho que apresentar trabalho em congresso, apresentar trabalho em revistas comuns, assim, revisões de literatura, eu acho que dá ao indivíduo um potencial muito grande na sua prática médica. É muito importante isso. E treina a cabeça.

Dr. Sebastião: O senhor atualiza o currículo do senhor sempre? Ou já deixou de lado esta preocupação?

Dr. Emil: Vou te contar, Bastião. Agora não preciso mais de curriculo. Eu

não preciso mais de coisa nenhuma. Tenho uns 80 trabalhos publicados

em revistas fora do Brasil, e deve ter uns 180, 190 publicados em revista brasileira. Mas, agora, só coleciono publicados fora e não tenho muito mais prá sair, tenho mais um ou dois em revistas estrangeiras. Agora, eu estou aposentado, não tenho mais tido oportunidade de criar coisas. Mas eu ainda estimulo outras áreas.

Dr. Sebastião: O senhor tem vindo aqui no HC?

Dr. Emil: Eu venho. No transplante, faço visita uma vez por semana.

Dr. Sebastião: Isso é opcional?

Dr. Emil: É opcional. Só porque eu quero.

Dr. Sebastião: O senhor pode participar de uma pesquisa aí, eventual também…

Dr. Emil: Mas, já trabalho pouco, porque agora estou gostando muito mais de ser didático, de orientação, de estimular….

Dr. Sebastião: E o senhor vem pela manhã, como é que está sendo a vida depois de aposentado?

Dr. Emil: Eu venho toda manhã aqui, menos quarta-feira, porque quarta-feira eu tenho um diálogo em inglês com a minha professora. Então, quarta-feira a partir das oito horas eu bato um papo de uma hora, uma hora e meia com ela, prá treinar um pouquinho e não venho de manhã aqui. Também vou uma vez por semana visitar meus doentes na hemodiálise, porque nós temos um pequeno serviço de hemodiálise, eu, o Estevam, o Pedro Renato (Chocair), então quarta de manhã saio da aula de inglês, vou lá, e lá eu to fazendo coisas, Bastiao. É curioso, lá eu crio. Por exemplo, sobre correção de anemia: verificar porque o Eprex não corrige a anemia de todos… e vai daí uns três trabalhinhos pro Congresso, feitos na sessão de dialise feitos no meu bate papo de quarta-feira de manhã.

Dr. Istênio: E as tardes?

Dr. Emil: À tarde, quarta-feira não vou ao consultório. Eu leio, eu assino muita revista, assinava muito mais, agora tá ficando muito caro? Eu assino umas 8 revistas, à tarde eu leio, leio, tomo nota das coisas que interessam.

Dr. Istênio: Quarta feira ?

Dr. Emil: Quarta feira. E depois das 6 horas vou ao cinema com a minha mulher.

Dr. Istênio: Toda Quarta ?

Dr. Emil: É.

Dr. Sebastião: Vê que tipo de filme?

Dr. Emil: Vou te contar, eu assiti esse filme do Jack Nicholson. Eu achei o cachorrinho fantástico, uma maravilha! Você viu ? Teve dois treinadores aquele cachorro só prá fazer aquilo.

Dr. Sebastião: A gente nao sabe mais se é um cachorro de verdade ou só foi efeito de computador. (risos) Mas e os outros dias da semana?

Dr. Emil: Toda manhã eu venho aqui, segunda, terça, quinta e sexta.

Dr. Sebastião: E à tarde?

Dr. Emil: À tarde vou ao consultório, segunda, terça, quinta e sexta.

Dr. Sebastião: E o senhor chega no consultório e fica até tarde ?

Dr. Emil: Aí vai depender da boa vontade dos clientes. Geralmente, eu saio 6 e meia, 7 horas, eu moro longe, demoro uma hora, uma hora e quinze do consultório prá minha casa, porque São Paulo é um inferno. Você mora em Uberlândia e Uberlândia é uma cidade tranquila, graças a Deus

Dr. Sebastião: Em Uberlândia a gente se comunica no grito: “Querida, tô chegando!”

Dr. Istênio: Como é que se dividem percentualmente os pacientes do consultório do senhor ? Quantos são os pacientes transplantados, hipertensos…

Dr. Emil: Eu acho que mudou muito. Antigamente, antes do Décio, tinha muito hipertenso no consultório. (risos)

Dr. Istênio: … renal crônico ?

Dr. Emil: É. Gente que vai porque o médico do convênio disse que o rim

não tava bom e tem uns 3 de creatinina, 2,5 de creatinina, a maior parte é indivíduo com glomerulopatia em evolução.

Dr. Istênio: E os transplantados ?

Dr. Emil: Os transplantados são aqueles sujeitos que vão lá fazer seguimento.

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