Prof. Heonir Rocha recebeu Med On Line na reitoria da Universidade Federal da Bahia. Com raciocínio ágil, respondeu sobre temas diversos tais como: ensino, religião e vida. Ajudando nesta entrevista, os médicos que convivem e trabalham diariamente com o Prof. Heonir,: Maria Aciole (Profa. Adjunto), Reinaldo Martinelli (Prof. Adjunto), Luiz José Cardoso Pereira (Chefe da Unidade de Diálise), Margarida Maria Dantas Dutra (Profa. Adjunto) e Antonio Raimundo Almeida (Prof.Adjunto). Agradeço a todos e, em especial, à Maria Ermecília (Profa. Adjunto) pela ajuda e amizade. Nas páginas seguintes, um pouco do Prof. Heonir Rocha.
O Editor
Dr. Sebastião: Professor Heonir é, atualmente, o Reitor da Universidade da Bahia. É difícil ser Reitor?
Dr. Heonir: Muito difícil sim, porque ser reitor não significa apenas ter projetos, saber o que se quer e para que rumo se deve levar uma Universidade. Depende, evidentemente, de se estruturar uma equipe altamente qualificada que pense solidariamente e que realmente esteja unida no seu trabalho. Depende também da existência de suporte financeiro para execução mínima dos projetos importantes que evidentemente uma administração planeja. Eu acho que tenho as duas primeiras características, quer dizer, nós temos projetos, temos pessoas altamente qualificadas, mas temos tido, em função da crise no país, dificuldades financeiras para implementar esses projetos. A única coisa que está realmente neste horizonte, que não nos amedronta, de jeito nenhum, é que nós estamos ativamente ampliando os nossos convênios, os nossos contatos com a comunidade, com a sociedade e realmente de quando eu entrei para cá, eu acho que nós já duplicamos o número de convênios e o aporte financeiro resultante deles. É uma coisa que não resolve, mas mostra uma tendência que poderá nos ajudar numa situação difícil. Então é muito difícil, muito complexo ser reitor, mas tem seu aspecto positivo também.
Dr. Sebastião: E o senhor é Reitor há quanto tempo?
Dr. Heonir: Olha, a partir de julho do ano passado. Praticamente uns sete a oito meses como Reitor.
Dr. Sebastião: E como é que está a relação com o governo federal, ministério da educação e principalmente no que diz respeito a autonomia da Universidade brasileira?
Dr. Heonir: Eu acho que os reitores de modo geral estão favoráveis a autonomia. Esse é um assunto que já vem sendo discutido há muito tempo e não se resolve. O governo está prometendo um projeto sobre autonomia para ser divulgado dentro de um a dois meses, no máximo, é o que realmente a gente está imaginando, mas nós não temos ainda um projeto que tenha sido resultante de um trabalho coeso de reitores e estrutura universitária de um lado e o MEC do outro. Existem ainda alguns pontos não inteiramente bem estabelecidos. A comunidade acadêmica considera como essenciais alguns itens no acordo e o governo não aceita-os na totalidade. Mas, o que se está esperando, porque o governo já anunciou, é que a autonomia não vai ser uma condição ofertada a todas as universidades. O governo vai colocar um mínimo de qualificação exigida para que a Universidade atinja sua autonomia e isso ainda não foi definido. Estamos atrasados nisso porque percebo que as IFES querem a sua autonomia, mas precisam saber previamente quais os pontos que ainda precisariam ser trabalhados para conseguirem definitivamente atingi-la. O ministro já declarou nas últimas entrevistas que a autonomia vai ser conquistada e não vai ser cedida de modo geral a todas as universidades. Acho que esse é apenas um dos pontos que a gente sente que está sendo definido. Mas gostaria de dizer que realmente, nós gostaríamos de uma autonomia não para nos colocar em mais dificuldades, mas uma autonomia para nos dar mais liberdade de atuação e para trazer vantagens para a universidade. De modo que existe uma dose de preocupação para que, com a conquista da autonomia, não ficarmos com mais dificuldades financeiras do que as atuais e ainda com a obrigatoriedade de irmos conquistar e buscar verbas fora do governo. Estamos muito preocupados também com a situação dos inativos, como o governo vai lidar com isso, pois pode trazer uma condição a médio prazo, que inviabilizará o sistema de uma universidade pública e gratuita que é o desejo de todos nós.
Dr. Sebastião: Existe uma opinião corrente de que a autonomia universitária é o primeiro passo para o reitor de algumas universidades implantar o ensino pago como uma forma suplementar recursos. Como é a posição do senhor nesta polêmica?
Dr. Heonir: Eu não estou pensando nisso não… estou pensando é nas vantagens da autonomia. Vantagens de você poder ter um orçamento global e não um orçamento direcionado. Nós decidirmos e definirmos quais são as prioridades nossas, qual é a cara, qual é a fisionomia de nossa universidade e assim, termos muito mais agilidade de fazer aquisições materiais e de podermos manejar com o quadro de pessoal. Evidentemente, obtendo uma flexibilidade muito importante que nós não estamos tendo hoje, não estamos conseguindo de maneira nenhuma, e esse é um dos pontos críticos, dificílimos em nosso relacionamento com o governo federal: a questão de pessoal. Concursos não são feitos e o pessoal técnico administrativo praticamente está diminuindo muito em determinadas áreas, sem a possibilidade de reposição. De modo que a situação está muito difícil nesta fase transitória, entre este sistema que é o nosso e o sistema futuro que antevejo como sendo um sistema melhor, mais dinâmico, mais flexível. Este futuro não pode ser um sistema em que a gente vai sendo submetido a fome de coisas essenciais- e isso aí seria brincadeira, pois não será esse o projeto de uma universidade pública e gratuita. Os alunos interpretam tudo como tendência a privatização. Existe uma preocupação por parte deles e qualquer taxa mínima que seja cobrada dentro da universidade, eles acham que nós estamos embarcando privatização. Por exemplo, aqui, nós estabelecemos uma taxa de 20 reais para o aluno quando se matricula, é a taxa de matrícula. Eles acham que isso é absurdo e que isto é privatização, que isso é cobrança indébita. Não sabem eles, ou sabem porque realmente já expliquei, que para cumprir o programa de apoio e de orientação estudantil com uns seis tipos diferentes de ajuda ao estudante, nós temos que ter algum tipo de apoio financeiro. O MEC há algum tempo já não contempla o estudante com apoio financeiro vindo lá de Brasília. Esse apoio, o que vinha, era muito pequeno e, ultimamente nessa crise toda, eles estão praticamente retirando. Aqui na nossa universidade, as cobranças de taxas não envolvem os alunos classificados como D e E na triagem sócio-econômica mas aqueles classificados como A, B e C contribuem com esses 20 reais. D e E, que corresponde a mais de 20% dos alunos, não pagam nenhuma taxa, de espécie nenhuma. Mesmo assim, eles acham que isso é uma universidade paga. O que evidentemente é um pequeno exagero. Compreendo a reação deles, acho perfeitamente natural, mas, isso é pra lhe mostrar que eu não estou disposto a dar nenhum passo senão dentro do ético e do sério. Interessante é que os estudantes cobram entre eles. Cobram a carteira estudantil. O DCE cobra 10 reais pela carteira. Se o aluno paga 10 reais, eles estão privatizando o DCE ? Eles estão admitindo que precisam de verba para o mínimo de programação interna do grupo corporativo. De modo que eu não estou achando que eu estou entrando em nenhuma privatização, até agora eu não entrei em nenhuma, não será com a autonomia.
Dr. Sebastião: Professor, há mais ou menos trinta dias, as universidades brasileiras intituladas “de pesquisa” reuniram em Belo Horizonte para definirem políticas próprias de olho na distribuição do orçamento federal. O que o senhor acha dessa nova divisão entre universidades que pesquisam e as que não pesquisam?
Dr. Heonir: Olha, na lei de diretrizes e bases, eles fizeram a classificação dos sistemas de ensinos superior categorizando, como você já mencionou, tipos diferentes de universidades e exigindo que a universidade “verdadeira” – eu estou botando este termo entre aspas porque estou criando-o agora, tinha que ter certas qualificações. Teria que ter ensino bem estruturado e profundo, teria que ter atividades de pesquisa, teria que ter atividades de extensão e teria que ter qualificação de pessoal. Pelo menos um terço de seus docentes teriam que ser qualificados como doutores ou mestres. Trinta por cento não é muito quando a gente soma as duas categorias em relação ao total. A universidade teria que ter pós-graduação estruturada, estruturada atrás de um grupo como por exemplo, uma pró-reitoria de pesquisa e graduação. A quantidade de trabalhos publicados não ficou assim muito bem detalhada, mas com isso, o governo estava colocando em um segundo grupo as universidades que ensinam, fazem extensão, mas não têm pesquisa. Foram criadas uns quatro grupos de universidade qualificadas de acordo com o seu índice de maior ou menor complexidade estrutural. Isso não resultou ainda em medidas definidas. Nesta classificação, algumas universidades terão um pouco mais de direitos do que outras, p.ex. na criação de cursos, no acessos a verbas etc. Nós podemos chegar a ter quatro ou cinco unidades diferentes, mas que não seriam universidades, mas uma federação, ou institutos de ensino e pesquisa. Isso, no entanto, é apenas a sugestão que consta na lei de diretrizes e bases. Se for uma medida seriamente aplicada não vejo malefício. Acho que algumas universidades que são chamadas de universidades, deixariam de ser. Esse é o ponto traumático e por isso existe grande reação, sobretudo de algumas universidades privadas que, por não terem nenhuma investigação ou pós-graduação estruturada, são chamadas de universidades, mas na realidade, não atingem os quesitos necessários para tal. Compreendo o que é você ser chamado de universidade durante muito tempo e deixar de ser. O governo ainda não entrou nisso em grande parte por ter que avaliar todo o sistema e qualifica-lo previamente, antes de implantá-lo. Agora os pontos em que se baseia o governo para estas avaliações não estão sendo plenamente aceitos por todos. Eu estou lhe dizendo isso porque nós temos duas associações de classe ligadas a cúpula da universidade: CRUB que é o Conselho de Reitores e a ANDIFES (associação dos docentes do ensino superior). O CRUB tem reagido contra a esse tipo de qualificação e ao chamado credenciamento e recredenciamento das universidades, tem procurado até juridicamente mostrar como isso vai ser difícil porque existem maneiras de obstar. Tenho impressão de que isso é uma reação precoce, não significando que o sistema seja ruim, de modo que, com o tempo, nós marcharemos para isso.
Dra. Margarida Dutra: Professor Heonir o senhor serviu de modelo para várias gerações de médicos formados pela nossa faculdade de medicina e muitos destes seguiram a nefrologia inspirados no seu modelo de médico, de professor, de pesquisador e acima de tudo de mestre. Atualmente nós vivemos uma crise grande na nefrologia, uma crise de credibilidade e eu perguntaria que mecanismo o senhor imagina para que nós pudéssemos voltar a atrair novos pós-graduandos para uma especialidade tão importante que é a nefrologia?
Dr. Heonir: A doutora traz um problema realmente crucial, que está sendo mostrado em vários centros formadores e não apenas nos do nosso país. Acho que o fato de você estar me considerando como modelo acaba sendo até uma coisa que preocupa um pouco o indivíduo. Isto amplia a responsabilidade na minha vida como professor universitário e na particular mas, ao mesmo tempo, é uma das coisas que mais gratifica a quem ensina. Acho entretanto, que essa diminuição na busca da Nefrologia reflete mudanças de concepção sócio-econômica e financeira ligadas a uma especialidade que é exigente e que resulta em muita dedicação. As atividades nefrológicas ligadas, por exemplo, a dois setores específicos: diálise e transplante, são trabalhosas e de muitas responsabilidades. Financeiramente não são essa grande atração. A responsabilidade do indivíduo aumenta desde o processo de captação de órgão no transplante e o acompanhamento do transplantado. Você tem muito conhecimento científico e a recompensa financeira é relativamente pequena. De modo que, vejo hoje na sociedade civil o interesse dos jovens muito ligado ao lazer, tipo e qualidade de vida e, tais características, estão fazendo com que grupos de sub-especialidades, passam a ter uma grande atração. Estamos passando por uma crise, em parte dependente deste fenômeno, mas a nefrologia continua a atrair gente de muito boa qualificação. Curiosamente, não sei se eu estou puxando um pouquinho a coisa pro nosso lado, a nefrologia seleciona pessoas de alta capacidade intelectual e que gostam de pensar, raciocinar, trabalhar e que quando penetram num determinado assunto, como por exemplo a hipertensão arterial, eles realmente aprofundam mais o conhecimento, se interessam mais do que outras especialidades, em buscar fatos básicos dos processos fisiopatológicos. Os nefrologistas estão se voltando muito para biologia molecular e, no estudo da célula, encontram respostas valiosas que acabam sendo aplicadas num conhecimento mais amplo do doente. Eu sinto que a nefrologia diminuiu a sua atração seguramente, não porque não existem líderes, vejo muitos líderes potenciais em vários outros locais, apenas acho que outras sub-especialidades, pelos interesses mencionados estão atraindo mais do que a nefrologia.
Reinaldo Martineli: Professor Heonir, como o senhor vê o problema da investigação científica atualmente no nosso país, na universidade como um todo, no Brasil e, particularmente, aqui na UFBa?
Heonir: Olha Martineli, eu acho que alguns pontos gerais devem ser mencionadas quando se faz algum comentário sobre a pesquisa no país. Nesses últimos anos, com a instalação das pós-graduações, não me parecem haver dúvidas do aumento na produção científica da universidade brasileira. A universidade passou a ter pesquisa estruturada, apesar de ainda contar com muitos problemas. O número de pessoas qualificadas aumentou, quer através dos nossos cursos, quer através da participação de nossos professores bolsistas em núcleos no exterior de muito boa qualidade. Aqui na UFBa nós caminhamos um pouco. Agora, pesquisa é uma coisa que precisa de investimento. Principalmente a pesquisa básica que é mais demorada, gasta mais tempo para se obter resultados e, frequentemente, mais dispendiosa. Nós temos tido ainda bastante dificuldades na implementação da pesquisa básica. O hiato entre o que existe lá fora, nos centros mais avançados, e a nossa situação daqui, aumenta gradualmente tornando muito difícil, alguma competição. Isso explica a razão de nós, inteligentemente, termos dedicado mais a pesquisa aplicada e, sobretudo, escolhendo temas peculiaridades locais. Estes temas locais são de responsabilidade nossa. Nós é que temos de estudá-los, no intuito de aprofundar o entendimento e sermos mais completos.E, neste caso, não só devemos ter a parte experimental mas também a clínica. Temos até mais facilidades de atrair o interesse internacional, estudando os problemas que são oriundos de doenças locais. No meu entender, o ideal seria termos numa universidade como a nossa, a existência de pesquisas básica e aplicada. Não é fácil manter um padrão assim, pois está cada vez mais difícil encontrar colegas que se dedicam exclusivamente à pesquisa básica. A crise financeira está atacando violentamente a área da pesquisa e as verbas correspondentes a projetos já aprovados pelo CNPq, FINEP, PRONEX (Programa de Núcleo de Excelência) estão praticamente desativados. As fundações do Estado estão ajudando, sobretudo a FAPESP, a de Minas Gerais e a de outros estados. Aqui, na Bahia, nós não contamos com uma fundação de apoio estadual. Deve ser o único estado de porte que não tem uma estrutura semelhante. Nossas perspectivas são preocupantes, mas evidentemente, a gente vai lutar e fazer o que é possível para conseguir ultrapassar esta fase, com o mínimo de condições possíveis para continuar pesquisando.
Dr. Antônio Raimundo: Na minha formação, foi um privilégio ter o Professor Heonir. Sempre esteve envolvido com ambulatorios, laboratorios de pesquisa, discussões de revistas… Durante um período, ele se dedicou à Pró Reitoria de Pesquisa da UFBa. Fui visitá-lo na sua nova função, e verifiquei que existia, sobre sua mesa, uma grande quantidade de revistas médicas, separatas etc, mostrando a sua preocupação em manter-se atualizado com a ciência. Ele foi uma pessoa realmente fundamental como modelo, inclusive nas incompreensões que sofreu e não se abateu. Gostaria de voltar ao passado e perguntar ao professor Heonir duas coisas: primeiro, como foram os anos iniciais da sua pós-graduação, de onde vem essa base para a investigação clínica e, a segunda pergunta, após voltar qual era o projeto que ele tinha em mente?
Dr. Heonir: Olha, sendo bem objetivo. A minha pós-graduação teve uma influência fundamental na minha vida e foi feita do seguinte modo: terminei minha graduação aqui, fui para São Paulo e passei seis meses trabalhando no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, enquanto aguardava a saída de uma bolsa para a Yale University Medical School. Durante este período, nós vimos um caso muito interessante de meningite num jovem, causada por leptospira. Não havia ainda muita descrição de quadros de meningites marcantes, causada por este agente e com o paciente não ictérico. Nós fizemos uma publicaçãozinha com o Dr. José Maria Ferreira, que era o chefe de clínica e uma excelente pessoa, que me serviu muito mais pra entrar em contato com o sistema de ensino e de funcionamento do Hospital das Clínicas da USP do que propriamente me preparar para a investigação.
Dr. Sebastião: O senhor tinha quantos anos?
Dr. Heonir: Olha, eu me formei com 23 para 24 anos. Eu acredito que tinha 24 anos nessa época. Fiquei em São Paulo de dezembro até junho. Aí sai para Yale, tive um período de seis meses na Cornell e passei dois anos e meio na Yale (NR: 1955-1958). Esse período foi excelente… formidável, o meu orientador, Prof. Paul Beenson era o chefe do departamento e homem muito sério e muito sincero. Quando ele me recebeu, olhou para mim e disse: olha, é ótimo que você esteja aqui, agora eu estava esperando uma pessoa mais amadurecida para trabalhar no laboratório. Eu respondi: ótimo que o senhor esteja dizendo isso, pois também sinto que preciso passar mais alguns meses trabalhando no sistema de vocês. Como ele era o chefe do departamento, colocou-me nos primeiros oito meses trabalhando como residente e só o chefe do departamento tinha esse direito: está aqui Dr. Heonir. Inclua-o no programa de residência com distribuição de tarefas. Aí eu fui incluído no trabalho de residente, fazendo rodízios por enfermarias, rodízio na UTI, no Pronto Atendimento e… realmente, um trabalho muito duro, cansativo, mas extremamente importante para mim. Depois disso, fui para o laboratório interessado em infecção do trato urinário, que era o motivo da pesquisa do Professor Beenson. Foi excelente. Lá, nesse laboratório, estavam LaurenceFriedman, o Lucian Guze que eram os dois outros fellows, que estavam no momento trabalhando. Foi um ambiente muito agradável e muito estimulante. Entrei diretamente na parte experimental e começei a me sentir muito atraído e a produzir alguns trabalhos. Acho que isso foi, realmente para mim, um passo fundamental, pois foi de lá que trouxe material para a tese de doutorado feita aqui. Doutorado, naquela época, era feito com a defesa de tese onde cinco professores analisavam seu trabalho e você tinha o título de doutor em medicina, sem fazer cursos anteriores. Quatro anos depois eu voltei aos Estados Unidos e passei seis meses na Johns Hopkins Medical School, dedicando a maior parte do meu tempo em laboratórios. Foi um período altamente produtivo. Acabei por trabalhar no laboratório em que, um dos indivíduos, era interessado em infecção urinária e o nosso trabalho aí, foi todo experimental, mostrando diferença do córtex, da medula em animais, migração leucocitária, inflamação do córtex, inflamação da medula, coisas de aplicação clínica, mas relativamente básicas para o entendimento de certos aspectos.
Dr. Sebastião: O senhor foi para os EUA já casado?
Dr. Heonir: Não, não fui casado para lá e, quando fui para o Hopkins, não era casado ainda. Eu me casei mais tarde. Casei me com mais de trinta anos. Agora, uma outra pergunta que o Raimundo fez, eu respondo que: para a minha formação em pesquisa básica e consequente, interesse em investigação, estes estudos foram fundamentais. Não muito tempo depois, nós começamos a ter um relacionamento com a Cornell e isso gerou a possibilidade de selecionar pessoas para treinamento no exterior. O programa Bahia-Cornell foi um programa muito importante e depois, o chamado programa Bahia-Pensilvânia. O pessoal deles vinha e passava relativamente pouco tempo aqui, no máximo um ano, enquanto que o nosso às vezes, ficava dois ou três anos por lá. A nossa preocupação foi muito mais com a Faculdade de Medicina e com a Universidade do que especificamente, com a Nefrologia. Estávamos, por exemplo, precisando de um indivíduo na área de pediatria- na Faculdade de Medicina, então o professor passava um período lá e, evidentemente, voltava e conseguia chegar à titularidade. E isso foi feito com endocrinologistas, hematologistas, reumatologistas, com o programa se expandindo e invadindo a Pensilvânia. Outros indivíduos, foram para Cornell. Na gastroenterologia, foi o professor Helito, mais ou menos nessa época. Para a Pensilvânia foram indivíduos de várias especialidades, sendo que o mesmo ocorreu na Cornell, com a ida de profissionais de outras áreas, inclusive cirúrgica. O Dr. Edgar Carvalho foi um dividendo indireto, pois um dos responsáveis do programa Bahia-Cornell, foi ser chefe de departamento na Virgínia e, através desses contacto, o Edgar Carvalho fez seu treinamento em imunologia naquele estado americano, que tem uma Universidade de primeira qualidade. Dei muita atenção em minha vida a selecionar e incentivar pessoas a se qualificarem. O Martineli foi no Bahia-Pensilvânia, depois ele próprio conseguiu outra bolsa e voltou a Yale. Antônio Raimundo já foi para Denver e no momento está desenvolvendo um programa de intercâmbio com estudantes Bahia-Denver, de modo que isso motivou muito o pessoal a se interessar por intercâmbios e a ter nestes, um grande espaço para a formação qualificada. Acho que é uma preocupação fundamental numa instituição de ensino.
Dr. Sebastião: O senhor é nascido onde?
Dr. Heonir: Floriano no estado dp Piauí. Também sou cidadão baiano. Sou cidadão da cidade de Salvador.
Dr. Sebastião: Ficou em Floriano quanto tempo?
Dr. Heonir: Fiz o meu colégio, o curso fundamental lá, até o primeiro ano do antigo ginásio, primeiro ano do curso secundário, quanto vim aqui pro colégio Maristas e aqui fiquei até o vestibular. Naquela época os colégios eram mais estruturados e a gente não precisava fazer curso pra vestibular não. Saí do Colégio Maristas, fiz o vestibular, e entrei pra faculdade de medicina.
Dr. Sebastião: Uma característica de todos os nossos entrevistados é que eles eram muito severos e com o tempo eles abrandaram um pouquinho. O senhor também teve essa fase?
Dr. Heonir: Eu não me considero ter passado por essa fase não. Eu uso outro estilo. Acho que não é preciso severidade para você adquirir aceitação, respeitabilidade… não é preciso severidade. Acho que você tem é que ter evidentemente, seriedade no cumprimento dos seus propósitos, tem que ter autenticidade mas, liberdade eu acho que é uma coisa muito importante e prefiro muito mais lidar com as pessoas com ampla liberdade. Nunca fui diferente, agora, se você me disser que ser severo é começar as coisas no horário, é ter um número certo de horas para começar e terminar as coisas, isso eu faço. Eu gosto de começar na hora e gosto que tenha a hora de terminar, até para respeito aos outros e isso a gente leva assim à risca (NR: Sebastião olha o relógio, suando frio e olhando o caminho da porta). Não precisei, por exemplo, de ficar preocupado com pessoas da qualidade daquelas que me cercaram. Elas entraram na atmosfera e o cumprimento fazia parte normal da suas obrigações, mas nenhuma exigência da minha parte, pois não acredito em severidade.
Dr. Sebastião: Como é que é o seu dia-a-dia? O senhor levanta cedo?
Heonir: Hoje é uma situação muito diferente por causa da reitoria, mas eu sempre acordo cedo. Eu durmo tarde e acordo cedo, isso é ruim, mas eu não durmo antes das meia noite e não acordo depois das seis. Geralmente um pouquinho antes das 06 e trabalho o dia todo.
Dr. Sebastião: Tem consultório?
Dr. Heonir: Eu tinha consultório ou melhor, ainda tenho mantendo atividade mínima. Mínima significa que não atendo mais doentes do hospital, não atendo mais doentes em residência, não atendo mais primeira consulta. Então você está vendo que estou praticamente sem atividade e apenas dando atenção aos poucos doentes que às vezes vêm do interior. Dentro de um período uma hora, eu resolvo os problemas da minha atividade clínica, que nesta fase não pode ser mantida no total. É impossível.
Dr. Sebastião: E esse é o primeiro cargo burocrático?
Dr. Heonir: É. Eu já fui Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação dessa Universidade e Diretor da Faculdade. Fui chefe de departamento algumas vezes, mas os cargos mesmo mais demandantes foram esses dois e agora como Reitor.
Dr. Sebastião: E na sequência de Reitores da UFBa, o senhor é o número…
Dr. Heonir: De reitores?
Dr. Sebastião: É, de reitores.
Dr. Heonir: Vou contar o número de retratos que não estão aqui, estão no meu Conselho Universitário pra saber que número eu sou. O primeiro Reitor você tem aí atrás de você: Prof. Dr. Edgar Santos criador da Universidade e que foi reitor por 14 anos. De lá pra cá foram uns seis reitores, cinco a seis reitores. Mas eu posso depois contar assim direitinho e dizer o número exato.
Dr. Luiz Cardoso: O senhor é uma pessoa extremamente dinâmica, uma pessoa a cada dia mais sapiente e parece que o tempo não passa para o senhor. Gostaria de saber quais as suas metas após o final da reitoria. Tenho muita curiosidade em saber como é que vai ficar, se vai continuar no mesmo pique de trabalho e, atrelando a essa pergunta, qual é o seu lazer? Eu sei que quando o senhor era acadêmico jogava futebol muito bem, ouve-se falar por aí que gosta de música clássica, de óperas, que é fazendeiro…fala um pouco…o senhor navega na Internet? Fala um pouquinho dessa parte.
Dr. Heonir: Olhe, lazer é uma parte importantíssima da nossa vida. Vou entrando logo no final da sua pergunta. Lazer pra mim, nestes últimos anos tem sido mais música. Consigo trabalhar com música. Ler e escrever com música. Ela tem um efeito estimulante e faz pensar. Em determinados momentos escolho compositores que me estimulam: quando estou querendo produzir um pouco eu boto Mahler. Gosto de Mahler e de todas as suas sinfonias, muitas peças dele eu escolho e boto porque acho que aquilo me estimula. Toda vez que viajo, o que trago mesmo de compras são discos o que me fez acumular uma quantidade razoável. O meu genro gosta de música e gosta até mais do que eu, de modo que ele é uma companhia excelente e ao viajarmos, visitamos aquelas lojas em Philadelphia e compramos muitos discos, muitas coisas bonitas. Então música para mim é excelente. Ópera aprendi a gostar assistindo no Metropolitana assim por acaso, não tenho nenhuma formação mas achei curioso, interessante e assisti várias, mas não é coisa que por exemplo fique ouvindo trabalhando. Gosto de uma sinfonia, de peças isoladas, de concertos, alguns instrumentos, como o piano, encantam todo mundo. O celo, violoncelo, é uma coisa belíssima e não tinha atentado pra isso. Ultimamente tenho comprado muitas peças, pois é um instrumento de musicalidade belíssima, uma coisa única, a música pra mim é grande. Pouco tempo pra Internet, pouco tempo. Tenho uma filha que trabalha em ciência da computação e, na minha casa, se eu precisar de alguma coisa eu a chamo, tipo: veja aí se tem um e-mail pra mim ou quero botar esse e-mail integral. Já no hospital que trabalhava eu tinha a Dona Rosa que usava o computador com maestria, com capacidade. Tenho a fazenda, que me dá momentos muito agradáveis também. Já começo a me sentir diferente quando entro na estrada pra ir pra fazenda. É uma coisa muito agradável o contato com a natureza, muito reconfortante, ótimo pra leitura. Um silêncio completamente restaurador. A rigor se eu fosse destacar duas coisas mais essenciais a música e no momento fazenda . Gosto de ler e não botei leitura como lazer porque leitura é parte da vida da gente, não sei se é lazer. Ler é um prazer especial pra mim.
Dr. Sebastião: E essa fazenda compensa o baixo salário de reitor?
Dr. Heonir: Se compensa?
Dr. Sebastião: É
Dr. Heonir: Não, ela não compensa, financeiramente não, mas eu nunca esperei também, eu quero que ela não me dê despesa.
Dr. Sebastião: Ah, certo.
Dr. Heonir: A preocupação é essa, ela não pode me dar despesa, ela não pode ficar no negativo.
Dr. Sebastião: E o que que o senhor tem lá?
Dr. Heonir: Na fazenda?
Dr. Sebastião: É
Dr. Heonir:Eu tenho primeiro coisas para minha família. Como por exemplo um pequeno local com frutas. Trago muita coisa quando venho da fazenda porque eu não gostaria de vir da minha fazenda e não trazer frutas variadas e de época. Aqui na Bahia é uma maravilha… a gente tem o período do abacate, o período da acerola, o período do cajá, período da manga, tem permanentemente jaqueiras, múltiplas laranjeiras. Eu não compro praticamente laranja, porque trago da fazenda. Ter a fruta fresquinha do momento é uma maravilha, coisa muito interessante, carambola, graviola, frutas daqui e da região. Plantei e tenho quase todas. E é bom.
Dr. Sebastião: O senhor vai lá com que frequência? Fim de semana?
Dr. Heonir: Frequência maior é de 15 em 15 dias, as vezes eu passo três semanas. Mas de 15 em 15 dias eu gosto de ir. Quando eu posso. As vezes passo mais de 15 dias sem ir lá. Agora ele fez uma pergunta também inicial…(NR: refere-se a pergunta de Martinelli sobre seu futuro, pós reitoria)
Dr. Heonir: Eu gostaria de poder saber realmente… todo mundo tem um plano. Eu acho que o indivíduo que não está pensando e não está pensando à frente, não está sonhando, ele já está para trás, então…
Dr. Aguinaldo Martineli: O que o senhor gostaria de fazer que ainda não fez? Ficou alguma coisa por fazer?
Dr. Heonir: Olha meu amigo, isso depende de tanta coisa… tanta coisa. Olhe, no momento, estou tão concentrado no meu tipo de trabalho, mergulhado naquilo que estou fazendo e procurando me ajustar, procurando não ter decepções e a tolerar as dificuldades. Numa crise econômica como essa, eu poderia estar aqui altamente preocupado mas não me sinto responsável por ela, e tenho ainda a capacidade de me educar e dizer: “olha faz tudo que é possível, com a intensidade maior que você puder e o que você não fez não foi culpa sua”. Se eu não posso fazer mais do que me dedico, então não vou me preocupar. Evidentemente, de vez em quando, alguma coisa acontece e a gente se irrita um pouco. A falta de verbas federais é um bom exemplo. Uma coisa que me irrita é quando eu vou ao ministério e mostro projetos de reparos emergenciais para os prédios da UFBA. Digo a eles que tenho que arrumar telhados, rever impermeabilizações e, se não me derem dinheiro para isso, quando vierem as chuvas o prejuízo vai ser enorme, pois os aparelhos, as portas e paredes vão ficar danificados. Fiz esse projeto, um projeto que mostrava telhados, forros, pisos, esquadrias, coisas mínimas, não tinha nada de aparência era tudo interno, pois bem, não mandaram o dinheiro e a chuva veio. A chuva entrou pela prefeitura de campus e outras unidades até 80 centímetros de altura, invadiu as salas, os pisos alagados, as portas empenadas, as esquadrias, a parte de divisórias…um prejuízo enorme. Fotografei isso e já mandei pro Ministro hoje. Eu ia à Brasília com urgência, mas passou aqui um indivíduo que trabalha lá no MEC, um professor da Universidade, que é diretor de processos de avaliação do ensino superior e entreguei o documento para ele. Vai para Brasília levando o documento pro ministro e caso ele não nos socorra a gente vai paralisar algumas salas de aula. Portanto o cargo aborrece um pouco, mas você tem que pensar em como fazer para pressionar e ver o que vai acontecer.
Não penso de maneira nenhuma em renovar meu período na reitoria. Se passar quatro anos, serão quatro anos, não estou com nenhum interesse em ser candidato a reeleição. Agora pretendo continuar sim, se tiver condições, trabalhando na área médica. Idealmente queria era diminuir meu trabalho de atividade clínica ou de outro local, e ficar muito mais em laboratórios ou coordenando alguma atividade ligada a pessoas mais jovens, realizando investigação. Isso é o que eu estou podendo responder no momento. Agora, a vida a gente não sabe e as coisas podem surgir.
Dr. Sebastião: Professor, o senhor tem quantos anos?
Dr. Heonir: 68.
Dr. Sebastião: Qual é a sua visão sobre a Nefrologia nacional?
Dr. Heonir: Olha, nossa Sociedade cresceu muito. Cresceu bastante. Acho que ela é uma sociedade feita de pessoas competentes, que desenvolveu algumas áreas específicas de diálise e transplante, e o fez razoavelmente, não muito por pesquisa autóctone mas por aplicação de conhecimentos externos usando metodologia que veio de fora, mas feita com critério e com correção. Como toda profissão, vocês podem apontar um ou outro desvio de conduta, mas isso estou passando por cima porque vejo a coisa mais de um aspecto global. Por outro lado, acho que nossa Sociedade tem esse cunho científico, um interesse acadêmico e científico encontrados em vários grupos de nefrologistas em várias universidades. Isso tem sido um dado positivo. Claro que ela ainda precisa crescer bem mais, ela tem campo pra crescimento e como atrair mais jovens de qualidade. Quero lhe dizer que, aqui na Bahia, nós temos uma peculiaridade: nossa nefrologia é muito ligada a epidemiologia clínica. Noblat, Antônio Alberto, são pessoas que tem ajudado enormemente o grupo a crescer, sobretudo com trabalhos experimentais na área da epidemiologia clínica e nefrologia. Eu acho que nós vamos ter futuros colegas muito bons, enriquecendo essa atmosfera e dando estímulo a continuidade de trabalho.
Dr. Sebastião: Professor, a gente agradece. Muito obrigado a todos e gostaria de tirar uma foto de todo grupo aqui.
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