Entrevista – Horácio Azjen

No dia 29 de novembro de 2000, numa das salas do Hospital do Rim e Hipertensão, em São Paulo, encontramos com o Dr. Horácio Ajzen para um bate papo nada convencional. Falando sobre sua vida  e a construção da  influente disciplina de Nefrologia da UNIFESP ( Escola Paulista de Medicina ), o Dr. Horácio contou detalhes interessantes e desconhecidos por muitas pessoas. Se, a vida científica do Professor é facil ser encontrada em qualquer banco de dados, devido às inúmeras publicações, a sua trajetória humana é agora desvendada pela Med On Line. Participaram, desse encontro, os Professores Doutores: Sérgio Draibe, Ita Pfeferman Heilberg, Oscar Pavão e Arcelino Miranda. A todos, nossos agradecimentos.

O Editor


Dr. Sebastião:  Dr. Horácio é um prazer bater um papo com o senhor e eu gostaria de iniciar a entrevista perguntando o básico:  onde nasceu e qual a razão de ter partido para o caminho da medicina?

Dr. Horácio: Então muito obrigado Sebastião, eu estou bastante honrado com essa entrevista e é realmente um prazer conversar com você e com outros elementos da disciplina. Eu sou um imigrante, nasci na Polônia e vim para o Brasil em 1937 com 7 anos de idade. Naquela época as coisas na Europa estavam muito difíceis…era uma época de pré-guerra. Meu pai veio dois anos antes e começou a vida como todos imigrantes começam: como mascate, vendendo gravata pelo interior de São Paulo e pelo interior do Paraná. Dois anos depois vieram minha mãe, minha irmã e eu, ela mais velha do que eu em torno de 9 anos

Dr. Sebastião: Isso foi em que ano?

Dr. Horácio: Isso foi em 1937, a guerra estourou em39. Meu pai veio prá cá em 34 devido a perseguição aos judeus na Europa. Ele era empregado, era contador da estrada de ferro, que era uma coisa boa para época. Eu tinha uma família bastante lúcida,um tio que era advogado, uma tia que era pianista mas que começaram a perder os empregos,como resultado viemos ao Brasil estabelecendo-se em Santa Cruz do Rio Pardo cidade da alta Sorocabana perto de Ourinhos. A imigração naquela época não era uma imigração facilitada, havia a chamada “carta de chamada”, com um número limitado de imigrantesque eram chamados por parentes ou por amigos que já residiam no Brasil (por isso é que se denominava carta de chamada), Desta época lembro de uma coisa curiosa, .na Europa, banana era uma coisa muito, muito cara eu nunca tinha comido banana pois o preçopor uma banana era coisa incrível. Quando eu desci no Porto de Santoso meu pai estava nos esperando; desembarquei com minha irmã e minha mãe e aí eu vi um carrinho vendendo banana perguntei ao meu pai se eu podiacomer uma banana. Como resposta recebicoma quantas você quiser! (risos). Bom aquilo me deu uma idéia que meu pai era muito rico (risos)!Devo ter comido não sei quantas bananas e depois fui pra Santa Cruz do Rio Pardo e vi que uma dúzia de banana custava um tostão naquela época não sei o que representa hoje.

Dr. Sebastião:Como se chamavam?

Dr. Horácio: Meu pai chamava-se Aron, minha mãe Elka e minha irmã Balbina. Nasci em abril de 29, portanto estou com 71 anos de idade. Eu não sei direito o que me levou a ser médico. Lembro que quis ser médico já morando em Londrina no Paraná. Nesta época minha mãe teve uma doença qualquer e o médico foi examiná-la, eu devia ter uns 10 anos de idade e pensei:”puxa acho que eu vou ser médico!” Quando terminei o ginásio, Ginásio Londrinense, vim estudar aqui em São Paulo no Anglo-latino e meus pais tinham certeza que eu iria serengenheiro e falavam sobre isso e eu ficava quieto. Quando vim paraSão Paulo para estudar nocolégio Anglo-latino falei em estudar medicina. Foi um auê na minha casa: “onde é que já se viu ser médico!…engenheiro é melhor!” mas acabei sendo médico e estou muito feliz por ter escolhido a medicina, acho que é uma profissão boa.

Dr. Sebastião: Ainda a respeito desse núcleo familiar…seu pai já estava estabelecido em Londrina e que tipo de negócio tocava nessa época?

Dr. Horácio: EmSanta Cruz do Rio Pardo fiz o primário e aquela foi uma época de muita dificuldade pois tinha que aprender a língua português a…eu só falava polonês. Minha irmã casou e foi morar em Rolândia, uma cidade além de Londrina Paraná, onde meu cunhado tinha uma loja. O meu pai vendeu a loja em Santa Cruz do Rio Pardo e foi para Londrina onde comprou outra loja. Londrina, naquela época, tinha uma única rua com luz, e as ruas era um barro só. A gente andava de bota por causa disso A loja de armarinhos e era uma loja muito boa, uma loja grande. Em londrina eu fiz o ginásio. Aliás uma turma fundadora do ginásio (Ginásio Londrinense). Quando terminei o ginásio vim para São Paulo e fiz o Anglo-latino por indicaçãodo Dr. Abowski. Era um pediatra famoso em São Paulo cujo pai era muito amigo do meu.

Dr. Sebastião: E aqui, em São Paulo, o senhor morou sozinho?

Dr. Horácio: Nessa época morei num hotel. Vim para São Paulo com 16 anos de idade e morei num hotel na Av. Brigadeiro Luiz Antônio, chamado Hotel Avenida, rigorosamente familiar! (risos gerais…ninguem acreditou!). Na placa estava escrito assim:”rigorosamente familiar”e os donos do hotel era um casal: ele era dentista e ela era uma senhora fantástica… Dona Nina. E era rigorosamente familiar até meia-noite.(risos..confusão…bagunça geral…todo mundo interessado). Depois da meia noite era uma coisa fantástica, pois era uma pensão onde tinha muita gente e funcionário público que morava lá por mês, moças, rapazes, etc… e nessa época eu também tive muita sorte porque o quarto onde ficava era grande com 5 camas e com 5 colegas. Tive muita sorte porque um estudava engenharia, outro estudava direito, outro fazia arquitetura e tinha um colega que estudava comigo no Anglo-latino e outro que eu não me lembro, mas eram 5, cada um tinha a sua cama, cada um tinha a sua mesa para estudar; foi uma influência muito boa porque todos eles estudavam, todos estavam na universidade. Era realmente um exemplo.

Dr. Sebastião: O senhor tinha algum apelido?

Dr. Horácio: Não, na Polônia eu era chamado de Eça

Dr. Sebastião: Eça?

Dr. Horácio: Eça. O meu nome Horácio é traduzido.Não existe na língua polonesa o nome Horácio, existe Horacio clássico.

Dr. Sérgio Draibe: O senhor se referiu a perseguição dos judeus durante a 2aguerra e eu queria saber quais são suas memórias daquela época. O senhor se lembra pessoalmente de restrições referentes a etnia das pessoas, às minorias… ?

Dr. Horácio: É…é uma pergunta que as vezes dói um pouco falar sobre isso… e eu me lembro bastante bem. Como eu me referia anteriormente, tinha meu pai que era contador e trabalhava na estrada de ferro, tinha um tio advogado, tia pianista e, para aquela época, judeu atingir estas posições era muito difícil pois a maior parte dos judeus trabalhava em comércio num nível mais baixo. Por sinal o meu avô era tintureiro, tinha uma tinturaria e eu morava numa vila num predinho com toda a família. O prédio era da família com 3 ou 4 andares. De manhã era café, era chá com leite e pãobatata que a gente colocava no forno, essa batata assada. Almoço e jantar comum. No entanto os dois últimos anos antes da imigração ficou mais difícil o dia a dia.

Dr. Sérgio Draibe: Mas e as restrições como se manifestaram?

Dr. Horácio:Começou exatamente com meu tio que era advogado e perdeu o emprego. Não podia mais trabalhar na profissãomeu pai demitido da estrada de ferro… então as opções de trabalho foram ficando muito pequenas apesar de morar em Lucks, hoje Lods,uma das principais cidades da Polônia, onde a colônia judaica era muito grande. Eu não senti, pessoalmente nada. É muito difícil sentir porque eu tinha aquele grupo de pessoas ao meu redor, era muito criança…eu ia para a escola primária onde uma tia era professora, voltava e ficava brincando em casa comum ou dois amigos que nem eram judeus. Mas, pessoalmente, não senti nadatalvez a idade cooperavapara não sentir o anti-semitismo ao contrário de toda a família.

Dr. Sérgio Draibe: E aqui no Brasil, professor?

Dr. Horácio: Eu nunca tive aqui no Brasil nenhuma restrição pelofato de ser judeu. Quando vim de Londrina para estudar aqui em São Paulo,todos os meus amigos eram não judeus. Amigos que estudavam na faculdade de direito e que me deram carteirinha da faculdade. Com esse entrosamento, eu participava das pinduras, jogava baralho e ia ao Jockey Clube. Não tinha muita restrição de dinheiro naquela época. Meu pai deu ordens ao dono do hotel: “se ele precisar de dinheiro você pode emprestar” Foi assim durante todo o tempo até depois que meus pais morreram e o meu cunhado assumiu o papel de pai. Meu cunhado,,realmente, era um cara que me tratava igual aos próprios filhos. Era um grande sujeito.

Dr. Sérgio Draibe: De onde surgiu essa verve musical, o piano que o senhor toca e não conta pra ninguém? (espanto geral…)

Dr. Horácio: Isso é uma coisa da cultura judaica. Os filhos tem que aprender alguma coisa de música. Eu queria tocar piano e o meu pai dizia não, você tem que tocar violino a sua irmã tem que tocar piano!(risos). O fato é que eu aprendi a tocar violino. Naquela época, tinha um professor que ia 2 ou 3 vezes por semana na minha casa e eu tocava… aliás o violino eu tenho até hoje.

Dr. Sérgio Draibe: Violino inicialmente?

Dr. Horácio: Só violino. Piano eu nunca toquei porque o meu pai dizia que a minha irmã que tinha que tocar piano e eu tinha que tocar violino.(risos gerais)

Dr. Sebastião: Essa determinação dele era aqui no Brasil ou ainda na Polônia?

Dr. Horácio: Isso aqui já em Londrina. Aí comecei a aprender violino e toquei vários anos violino e, quando eu vim para São Paulo, fui ao conservatório na Av. São João onde acabei freqüentando unsmeses,depois disso nunca mais, larguei o violino e nunca mais toquei no violino,

Dr. Sérgio Draibe: Piano então é só uma foto que o senhor tem?

Dr. Horácio:Piano é só uma foto. Eu gostaria de tocar piano… porque realmente eu gosto de música popular no piano…Você tá chateado por qualquer coisa… vai no piano e toca…relaxa…esquece. Mas no negócio do violino, tem uma coisa interessante…

Dr. Sebastião: Que marca que é esse violino?

Dr. Horácio: Esse é o problema. Estava escrito lá no fundo Stradivarius 1924! ( espanto geral ). Há poucos anos tive um cliente que é um cara conhecidíssimo no mundo dos violinos . Mostrei o meu para que ele avaliasse. Ele pegou… abriu a caixa… olhou o violino de um lado para outro e aí se fixou no arco…. e eu olhando para ele, o cara não via o violino só estava olhando o arco. Passou uma meia hora, meia hora juro, e foi categórico:”seu violino não vale nada, agora o arco vale 2 mil dólares” (risos).

Dr. Sebastião: Qual a explicação? (meio inconformado).

Dr. Horácio: Pois é…a explicação é que a madeira do arco era uma madeira toda especial e a parte que você segura o arco era de madre-pérola, mas foi assim:”o violino não vale nada, agora isto aqui vale 2 mil dólares, quer 2 mil dólares?”Falei não! Não quero, o violino esta lá até hoje.

Dr. Sebastião: Mas não é um Stradivarius?

Dr. Horácio: Não , não é um Stradivarius, não vale nada. Aí ele me deu a história do violino. Esse violino foi feito na Itália, foi feito assim em série e não tem valor nenhum, e o Stradivarius estava lá porque o fabricante resolveu por nome de Stradivarius, mas não vale nada mesmo, agora o arco vale 2 mil dólares! Um violino comprado lá em Londrina.

Dr. Sebastião: Nada de pais repressores então? A convivência era boa…e quando e como eles se foram?

Dr. Horácio: Eu tive uma convivência boa. O meu pai eramuito rígido mas muito compreensivo. Em casa as grandes festas judaicas eram celebradas em conjunto. Cresci assim, com esse sentimento. Por outro lado, meu pai era muito rígido, minha mãe nem tanto….ela era mais sossegada e,realmente, eles eram bons intelectualmente. Falavam 5 línguas e eu vi minha atender 3 ou 4 indivíduos na loja, cada um falando numa língua diferente assim corriqueiramente. Liam e escreviam em 5 línguas. Meu pai era um cara muito liberal mas enérgico e, naquela época, lá em Londrina o passa-tempo da minha idade era jogar snooker e até eu jogava bem…o pessoal ficava em volta da mesa e apostava no meu taco… Eu me lembro uma vez que ele tinha proibido que eu jogasse snooker e um dia estava lá numa mesa jogando snooker e os caras apostando quando ele chegou. Dito e feito, me pegou pela orelha e me arrastou uns 4 quarteirões até à minha casa…foi puxando pela orelha a rua inteira até chegar na minha casa. Lá chegando disse:”vai para o quarto, tira as calças, vira de bunda pra cima que eu vou lá daqui há pouco”. Levei uma surra rapaz!!!! (risos gerais…todos dando a maior força pro pai). Depois disso continuei a jogar snooker (risos).Mas ele era compreensivo, eu me dava muito bem e eles falavam em Yiddish comigo e, entre eles, de vez em quando, falavam alemão,russo, polonês mas comigo eles falavam Yiddish e eu respondia em português. Quando vim para São Paulo, meu pai que era meio reservado parao negócio de sexo, procurou um médico aqui que se chamava Antônio Pasqua Neto ( que era um clínico fantástico na Barão de Itapetininga (a minha mãe já se tratava ele),e aí quandofui levá-lo na Sorocabana, a única coisa que ele falou foi:”olha já falei como Dr. Antônio Pasqua Neto se você tiver alguma doença venérea, você vai lá direto e nem precisa falar pra mim”(gargalhadas gerais)

Dr. Sérgio Draibe: Mas já tinha antibiótico nessa época professor?

Dr. Horácio: Tinha e por sinal era aquela penicilina aquosa, de 4 em 4 horas, era terrível (risos)

Dr. Sérgio Draibe: Quer dizer que o senhor conhece o antibiótico?

Dr. Horácio: Conheço muito bem esse antibiótico. (bagunça geral com as revelações!)

Dr. Ita: (cortando a gandaia geral ) Não vim pra moralizar, mas eu queria saber como é que esse paulista foi encontrar uma carioca linda como a Dona Lea?

Dr. Horácio: É, essa é até uma pergunta que me agrada! (sorrindo aliviado)e dá até pra fazer uma média com ela. Quando nós estávamos na escola, ali pelo 3oou 4oano, eu tinha um colega que chamava Bernardo Akerman nós resolvemos fazer o chamado Grupo Universitário Judaico, composto por estudantes judeus e depois de organizá-lo aqui, fomos fazer o mesmo no Rio. O interessante que quando eu fui pro Rio eu estava namorando uma outra moça, do Rio também e, tinha vindo a São Paulo várias vezes etc. começamos a namorar e quando eu fui para o Rio então…

Dr. Sebastião: (preocupado com as próximas palavras do Professor) Essa história o senhor está autorizado a contar?

Dr. Horácio: Essa eu estou.(risos gerais). Aí eu fui para Rio namorando essa moça e o Grupo Universitário de lá deu uma festa num restaurante no Morro da Urca, onde tinha uma festa dançante. Eu estava sentado com essa minha namorada e a Léa do lado. Aí eu a minha namorada: para dançar?. A resposta dela foi:”eu não quero dançar”, me virei para Léa e falei:”você quer dançar comigo?”Ela falou:”eu quero sim!”, Saímos dançando e, deixei a namorada lá plantada e levei a Léa para casa(risos). Namoramos durante 1 ano em que, a maior parte das vezes, ela vinha pois trabalhava num grande laboratório, era secretária, ela vinha geralmente na sexta-feira de ônibus Cometa e passava sexta, sábado e no domingo de noite voltava para o Rio.

Dr. Sebastião:O curso de medicina do senhor foi aonde?

Dr. Horácio: O curso de medicina foi aqui na Paulista. Eu entrei em 50 e formei em55, então foi assim que a Da. Léa entrou na minha vida e estamos bem até hoje.

Dr. Sebastião: Quantos filhos?

Dr. Horácio: Eu tenho 3 filhos. Tenho 2 homens e 1 menina. O mais velho é médicoo outro, do meio, é administrador hospitalar e a minha filha é psicóloga

Dr. Sérgio Draibe: Qual dos 3 está melhor?

Dr. Horácio: Eu não sei (risada)…não sei te dizer…acho que cada um deles está levando a vida dentro da possibilidade e lutando, evidentemente.

Dr. Ita: Quando o Sérgio Ajzen quis fazer medicina qual foi a sua idéia? Apoiar? O senhor teve alguma influência na escolha da especialidade do seu filho?

Dr. Horácio: É, eu fiquei satisfeito e estou mais satisfeito agora que o meu neto com 17 anos também está fazendo vestibular para medicina. Acho que a medicina é, embora esteja socialmente com muita dificuldade, ainda é uma profissão que permite que você sobreviva. Com o Sérgio eu fiquei muito satisfeito. Ele entrou em Campinas, no vestibular na UNICAMP, se formou e veio fazer residência aqui na EPM. Foi nessa hora, por exemplo, que ele me perguntou: e agora? o que eu faço?. Durante o curso, o Sérgio gostava muito de fotografia, tanto assim que, um dos quartos do meu apartamento ele montou um estúdio, laboratório de fotografia. Tirava fotografia, aumentava,diminuía, tinha realmente uma propensão para isso Pensei:”puxa! é capaz dessecara ser radiologista, gosta de foto, tem o olho bom,tem uma imagem”. Quando foi para escolher ele disse:”mas você não acha que eu devo ser nefrologista?”Respondi:”eu não sei Sérgio, essas coisas são muito difíceis, para mim é muito mais fácil se você não fosse nefrologista”.O fato é que ele fez concurso na Escola Paulista, na Faculdade, na UNICAMP, em Ribeirão e, em 3 destas, fez o concurso para radiologista direto e na UNICAMP ele fez para nefrologia. Resultado: entrou nos 4 lugares. O dilema continuou:”e agora o que é que faço?”Foi aí que tivemos uma conversa longa e ele definiu pela radiologia.Acho que ele escolheu muito bem. Todo mundo lá em casa fala:”pô, mas você está estimulando os netos para fazer medicina!”. Eu estimulo mesmo, desde o menor até o maior. O maior estava em dúvida… se ia para veterinária ou para medicina… acabou escolhendo medicina.

Dr. Pavão: Quanto a Escola Paulista dos anos 50, como era o curso, os amigos?

Dr. Horácio: É. A coisa, você precisa também ter sorte nisto e você escolher bem os amigos… e eu tinha um grande amigo que era o Cassiano. Cassiano, Íris, Anízio Gamia, Elker de Azevedo que eram colegas de turma e formávamos um grupinho que estudava bastante.Anatomia, por exemplo, era um curso de terror. E 60% da turma de anatomia ficou em 2achamada, 2aépoca e depois dependência pois tinha dependência naquela ocasião. Mas essa turma de amigos, realmente estudava muito e, na realidade, eu comecei a estudar mais por causa dessa influência. Tínhamos umas moças que até hoje a gente se dá bem, que moravam aqui num apartamento chamado de inferninho… e era um inferninho mesmo!…pois era muito bom!…ficava aqui na esquina, em cima do restaurante… era uma turma que estudava mas também fazia farra! A relação professor-aluno era de uma distância fantástica, você tinha que vir de gravata,você tinha que não ter barba, não podia vir de tênis… se você olhar as fotografias do 1o, 2oe 3oanosvai ver todo mundo de gravata, todo mundo de paletó, todo mundo de avental. Mesmo o 3oano, já na enfermaria do Jairo, era assim,você tinha que estar arrumado, você tinha que estar direitinho porque se nãoera capaz de levar uma chamada. Você vê que hoje em dia mudou tudo, eu não sei e a relação hoje é melhor, não acho que seja não,Acho que está faltando um pouco de respeito. Naquela época, você tinha medo do professor, mas era um medo sadio não era um medo de pavor entendeu? Acho que eraum medo sadio que fazia você estudar e era uma coisa boa.

Dr. Sérgio Draibe: E a escola era boa?

Dr. Horácio: A Escola era muito boa. Eu não prestei concurso em nenhum outro lugar. Eu prestei concurso direto aqui na Escola e os três primeiros anos eram pagos, depois é que em 53 é que foi federalizada e deixou de ser paga. Mas era boa,  já tinha o Hospital São Paulo?, funcionando bem e era um hospital de ponta naquela ocasião.

Dr. Sebastião: Mas…o falecimento dos seus pais… é um assunto que o senhor evita?

Dr. Horácio: É, eu tento evitar mas já que você perguntou vou responder. Meu pai morreu de leucemia, com 54 anos de idade, quando eu estava no 3o ano da escola. Minha mãe foi assassinada por ladrão em casa. Meus pais estavam construindo uns prédios e ele tinha tirado dinheiro…

Dr. Sebastião: Em Londrina?

Dr. Horácio: Em Londrina. Ele tinha tirado dinheiro no banco, na sexta feira, para pagar os pedreiros na segunda e no domingo à tarde, depois do jantar, meu pai saiu para tomar café. Um cara aproveitou a saída dele e entrou em casa e pediu dinheiro para minha mãe.  Minha mãe era uma mulher corajosa e enfrentou o bandido. Aí ele a matou na hora com dois tiros. Eu estava em São Paulo nessa ocasião e foi uma época muito difícil porque eu perdi um vestibular por causa disso… e, em seguida, passei a andar com  revólver na cinta à procura do assassino.  Você vai publicar isso tudo?

Dr. Sebastião: Claro!

Dr. Horácio(risos). Eu acho que isso não precisa… mas eu vou contar. Comprei um revólver e andava pelo Norte do Paraná procurando o cara. Não o encontrei mas, casualmente,  tinha um viajante que o conheceu informou o seu paradeiro a policia de Londrina.

Dr. Sebastião: O senhor conhecia o assassino?

Dr. Horácio: Eu não o conhecia,  mas  esse viajante o conheceu. Um dia, lá em Santa Catarina, esse viajante encontrou-se com ele disse: “ô rapaz,  você desapareceu depois daquele assassinato”  Aí o cara se abriu, foi preso.

Dr. Sérgio Draibe: A Escola Paulista de Medicina surgiu como uma contra-partida a Faculdade de Medicina da famosa USP. Na época, era criar uma outra medicina, à boa medicina que já se fazia na USP?

Dr. Horácio: É…. havia uma certa rivalidade entre os estudantes da Escola e os estudantes da Faculdade sem dúvida nenhuma, e eles sempre estavam muito à frente da gente, em todas as coisas, na nefrologia, por exemplo, quando nós começamos nefrologia eles já tinham uma clínica de diálise para insuficiência renal aguda, fizeram rim artificial, então tinha uma certa rivalidade sim. A gente tolerava, era reconhecido, eles tinham mais condições, tanto assim que você comparar a escola cirúrgica da Faculdade com escola cirúrgica da Escola há uma diferença enorme. Na parte clínica não, tanto assim que a Escola foi pioneira em vários setores da medicina, cardiologia por exemplo, começou na escola, começou com Sílvio Borges que veio do México, os primeiros estudos de hemodinâmica foram feitos na Escola.

Dr. Sérgio Draibe: Apesar dos recursos estar lá na Faculdade….

Dr. Horácio: Apesar dos recursos. Mas a hemodinâmica começou aqui na escola. Os primeiros casos do Zerbini foram operados aqui. O primeiro doente que eu tive era um doente de aneurisma de aorta quando eu estava já na enfermaria do Jairo Ramos, no 3o ano. Foi um argentino que veio aqui e fez a cirurgia.

Dr. Sérgio Draibe: O Vargas?

Dr. Horácio: É um nome desse tipo assim, ele já era de idade etc,… então a Escola foi pioneira em muitas coisas, tinha uma parte básica muito boa, a parte de bioquímica era muito boa, na parte de clínica então nem se discute…. realmente sempre existiu a idéia que o médico formado na Escola, no sentido clínico, era superior ao da Faculdade, já na parte cirúrgica não…. depois a coisa foi evoluindo e o HC e o Incor e todas as outras áreas…..e realmente…. eles tem muito mais condições do que a gente tem.

Dr. Sérgio Draibe: Nessa época tinha várias coisas de ponta também.

Dr. Horácio: Aqui, na escola, sem dúvida nenhuma a cardiologia foi área de ponta, a propedêutica, a patologia geral com Sílvio Carvalhal. Ele era livre-docente, tinha saído ido pra Santos e depois voltou já livre-docente e montou uma disciplina de patologia clínica onde estudava todas as alterações valvulares. O Sílvio Borges fazia diagnósticos de alterações congênitas do coração pela radioscopia. A gente ficava lá olhando….então teve um grupo na escola, a partir do 3o ano, que teve muita sorte por estar junto com o Sílvio Carvalhal e junto com o Sílvio Borges. Nesse grupo estava o Oswaldo, o Portugal, o Natam… Nelson Peladino Saad, o Antônio Iunes… grupo que formou o pronto-socorro de Cardiologia com todos os integrantes em tempo integral. Não havia residência, não tinha internato, não tinha nada, você ficava lá porque queria. Eu trabalhava sábado e domingo no INPS, fazendo laudo a domicílio. Tinha um carro e, naquela época, você podia ir, entrar em qualquer lugar, serviam café…, fazia laudo dentro da penitenciária do Carandiru, só pra você ver como a época era.

Dr. Sérgio Draibe: Os padrões eram respeitosos…

Dr. Horácio: Muito…e não tinha assalto, tanto assim que eu ia com a minha família

Dr. Sérgio Draibe: Mas e sobre o começo da faculdade?

Dr. Horácio: Então este grupo tinha muita sorte pois foi liderado pelo Sílvio Carvalhal. De manhã tinha as atividades normais e a tarde a gente fazia visita a enfermaria com o Carvalhal e era sempre ele perguntando: o que você acha?,  o que você acha?. Isso foi um aprendizado fantástico!

Dr. Sérgio Draibe: Dr. Horácio, e a decisão para ir Seção de Metabolismo e Nutrição, como é que foi isso?

Dr. Horácio: Isso é um capítulo a parte da minha vida (risada). Eu sempre quis ser pediatra e no 5º ano da Escola e cheguei a fazer o concurso na Casa Leonor Mendes de Barros na pediatria! Passei e fiquei lá um certo tempo. Naquela época também tinha a Clínica Infantil Ipiranga, que era dirigida por uma livre-docente da Faculdade, uma excelente! Professora. Então fiz pediatria durante um tempo. Nesse período o Sílvio Carvalhal formou esse grupo. Passado um tempo cheguei para o Sílvio Carvalhal e disse: “vou largar o senhor agora e vou lá para a pediatria” e ele respondeu: “larga de ser besta, porque pediatria é apenas mamadeira, isso você aprende de uma hora pra outra, o que você precisa aprender é clínica médica!” Então foi aí que eu fiquei nesse grupo, convidado por ele, e a coisa foi caminhando de tal forma que eu deixei de ser pediatra pra fazer clínica, evidentemente porque realmente ele era um indivíduo que captava, agregava e ensinava

Dr. Sérgio Draibe: Ele sabia muito patologia.

Dr. Horácio: Muita, muita patologia. Dava prazer ver ele examinando um paciente. naquela época você discutia sopros, pre-sistólico, reforço pré-sistólico e hiperfonése de bulhas… coisa que hoje em dia você nem pensa nisso. Nessa ocasião, eu já tinha entrado, por concurso, na enfermaria do Jairo. Naquela época, a partir do 2o semestre do 3o ano, tinham 2 enfermarias, enfermaria de Propedêutica que o Jairo dirigia e outra a 2a Clínica que era dirigida pelo Sr. Antônio Gebara, um clínico fantástico!.  Foi nessa ocasião então que eu conheci o Oswaldo ele estava 2 anos na minha frente e passou a ser o meu monitor. A gente começou a trabalhar juntos e até disputava para ver quem fazia a anamne primeiro paciente que internava. O Dr. Jairo fazia visitas 3 vezes por semana e você tinha que apresentar o caso, discutia o caso e ele concordava ou não concordava e mandava fazer alguma coisa.  O Oswaldo era meu monitor… o Oswaldo estava fazendo estágio no Laboratório Central pois ele ia para os Estados Unidos e quando foi, em 55, veio o Magid. O Magid  um cara com visão futura

Dr. Sérgio Draibe: O Magid Iunes?

Dr. Horácio: Sim, o Magid Iunes. Ele chegou e formou um grupo e convidou alguns indivíduos para trabalhar com ele e eu fui um dos convidados. Estava, acho, no 5o ano, 6o ano e esse grupo foi para frente e formou então a seção de Metabolismo e Nutrição.

Dr. Sérgio Draibe: Ele veio de onde?

Dr. Horácio: Ele é formado na Escola, foi para o México, passou uns anos no México e depois foi para os Estados Unidos. Naquela época, a gente fazia endocrinologia, reumatologia, fazia tudo. Isso é que era a seção de Metabolismo e Nutrição. Ele  sempre teve uma liderança nesse grupo, tinha uma visão fantástica. A Rockfeller Foundation foi ele quem trouxe para a Escola e angariou junto a esta fundação todo o dinheiro para formar a infra-estrutura do tempo integral no Departamento de Medicina

Dr. Sérgio Draibe: E o laboratório?

Dr. Horácio: Laboratório e tudo mais… até pagava a gente para permanecer em tempo integral. Ele Oswaldo e eu tínhamos consultório dentro do Hospital São Paulo. Então o Oswaldo foi para Canadá e quem ficou na disciplina foi o Magid Iunes, eu, e o Barreto.

Dr. Sérgio Draibe: Vocês já faziam pesquisa nessa época?

Dr. Horácio: Nessa época, não! Nessa época, a primeira coisa que a gente tentou fazer foi um ambulatório bem montado, a segunda coisa foi fazer um laboratório básico, tanto assim que nós dosávamos, inulina, paraaminonipurato, fazíamos glicemia,  exame de urina, quer dizer… era um laboratório básico para atender o doente, o doente ambulatorial. Bom, aí chegou uma hora que o Oswaldo voltou para o Brasil e o Magid acabou saindo e, junto com Lezer, fizeram a Medicina Preventiva e me convidaram também. Eu acabei ficando lá algum tempo com eles… Fiquei assim uns 2 anos e  aí o Magid resolveu ficar na Medicina Preventiva em definitivo, o Oswaldo assumiu a Nutrição e Metabolismo que aí passou a ser chamada de disciplina de Nefrologia. Nessa hora já tinha o Tipulo, o Uanandy Andrade, depois veio a Cacilda e aí vieram vocês que começaram a pós-graduação. A pós-graduação começou…

Dr. Sérgio Draibe: Em 71.

Dr. Horácio: É, 71. De uma forma não oficial,mas depois tomou corpo e a disciplina deu um pulo fantástico. Nas primeiras fases, antes dos pós-graduandos, nós fazíamos trabalhos e o primeiro trabalho nosso publicado no Journal ofPhisiology,  foi em 63. O Oswaldo, eu e a Cacilda tínhamos feito um trabalho que era sobre o efeito da posição deitado em pé sobre a filtração glomerular com o uso da guanetidina, Foi publicado no Jornal of Phisiology em 63. Foi o primeiro trabalho que nós fizemos. Outra coisa interessante, em questão de trabalho, é que a gente servia de cobaia,. Um fazia o trabalho no outro. Eu fui sondado, passaram sonda vesical em mim e acabei tendo até bacteremia! ( todos os entrevistadores  boquiabertos ). É verdade! Tomei também mercuridrim, que era um diurético da época…. ( todo mundo pasmo…)

Dr. Sebastião: Mas do grupo, porque só o senhor era o escolhido pra ser passado na sonda vesical? (risos gerais).

Dr. Horácio:Não!! Não!!, Todos  eram escolhidos! Com exceção do caso que eu vou contar agora. O Henrique Barros Barreto descobriu que tinha uma duplicidade pielo calicial e falou: “eu não quero ser sondado, eu vou urinar, não quero ser sondado”. E a posição deitado em pé a gente fazia na mesa da radioscopia  pois estudávamos o indivíduo deitado e em pé com seus respectivos clearences. Estava eu na sala e a Cacilda na sala colhendo a urina dele quando nós levantamos o Henrique e ele fazendo força para urinar para não ter resíduo, e aí, nesse esforço intenso um monte de fezes … (risos gerais, bagunça)… foi rodando assim durinha, durinha, durinha. Estava eu e a Cacilda na sala. Peguei um papel e tirei aquilo de lá e continuamos como se nada tivesse acontecido. Quando fiz a tese de doutoramento eu promovia uma expansão muito grande nos pacientes e estudava o efeito da posição sobre secreção de renina. Nisso uma das pacientes, quando ficou de pé, desfaleceu. Quando ela estava começando a desfalecer eu grudei a paciente efiquei grudado com ela, nisso o Naif entra na sala e assustado exclamou:  “que é isso Horácio!!” (risos).

Dr. Sérgio Draibe: ……… Até hoje não foi esclarecido  muito bem esse episódio (risos).

Dr. Horácio: A gente brigava muito com o pessoal da Faculdade nessa época porque, nos Congressos, era uma coisa muito difícil. Enquanto eles apresentavam 50 casos de insuficiêncarenal aguda a gente não tinha nenhum e apresentávamos somente os trabalhos de fisiologia.

Dr. Sérgio Draibe: O que que o senhor fez pra atingir o topo da carreira acadêmica?

Dr. Horácio: Mais uma vez eu gostaria de mencionar o Magid Iunes. Chegou uma hora em que a vida estava se tornando um pouco mais difícil e só o emprego de fim de semana, sábado e domingo no INPS não dava para o sustento. Como no primeiro ano de casado eu estava morando com minha irmã, meu cunhado eu não sentia o problema financeiro. Mas quando mudei para uma outra casa a coisa começou a apertar e aí cheguei ao Magid e falei: “eu vou sair da escola, estou precisando de um emprego portanto eu vou sair, não vai dar para continuar a coisa como esta e ele falou: “não, você não vai sair, você vai ser meu assistente na clínica particular” e o Magid tinha uma clínica fantástica… realmente fantástica. Tinha dias com 6, 8, 10 pacientes internados e quando ele viajava, eu tomava conta. Acho que devo ao Magid o estímulo para continuar na vida universitária. Também devo ao Oswaldo um exemplo a medicina. Ele tinha um pai médico, uma família de médicos em que estavam habituados a levar uma vida acadêmica…. coisa que eu não tinha…, então eu realmente me espelhei muito no Osvaldo e teve uma época que fui um auxiliar dele. Depois fui subindo, as coisas foram caminhando… Uma época vieram 2 professores para cá, da Carolina do Norte, da Universidade de Carolina do Norte, um deles chamava-se James W. Woods. E ele veio aqui para estudar hipertensão arterial e fazia todas as dosagens de catecolamina por cromatografia de papel e me colocaram para trabalhar com ele. O Magid falou: ” você vai ficar com o Woodsi para auxiliá-lo” Assim, eu passava visita com ele, fazia biópsia de rim etc. Ele ficou seis meses aqui e foi embora para os Estados Unidos. Foi com a promessa de arrumar uma bolsa da Rockfeller. É claro que o Magid interferiu muito nesse negócio e aí eu fui pros Estados Unidos e fiquei lá por 2 anos. O primeiro ano foi básico,  onde eu fiz alguns cursos de bioquímica, matemática, estatística, mas ao mesmo tempo freqüentava enfermaria e foi quando começou realmente nos Estados Unidos o estudo do sistema renina angiotensina, a dosagem do sistema através de método biológico. Aí voltei para cá e naquela época não tinha pós-graduação, era doutoramento que você fazia, não tinha mestrado, você fazia doutoramento. O Oswaldo já tinha feito a livre-docência antes e aí eu fiz doutoramento. Foi o primeiro ano em que os candidatos a doutoramento tinham que fazer aquela exposição de 30 minutos, isso foi criado pelo pessoal da farmacologia, o Ribeiro do Vale. Eu fui o primeiro que fez isso. Você tinha que expor 30 minutos da sua tese, como é hoje, e depois então você a defendia. Na véspera tinha havido uma defesa de doutoramento de um médico da psiquiatria,que tinha tomado bomba, pau, pau mesmo, não passou e quando eu cheguei para vestir a beca a secretária falou: “vou dar a beca do fulano para você viu?” (risos). Falei: “obrigado, não quero essa beca não!”(risos). Depois de fazer o doutoramento aí fui para livre-docência, não tinha solução, tinha que caminhar. O que eu estava falando com a Ita e o Sebastião, há pouco, dizendo que você (apontando para o Sérgio) e o Álvaro tinham defendido. Aí então eu fiz livre-docência e, de repente, apareceu vaga para titular. Eu me lembro que estava com o Oswaldo em Paris, nós estávamos conversando, bebendo, o Sérgio Stella telefonou para lá e falou: “escuta você precisa dar o título da sua aula de titular”, meio bêbado, Paris, cabeça daquele jeito… eu falei: “Insuficiência Renal Crônica”, bom foi um Deus nos acuda para dar essa aula depois!

Dr. Sérgio Draibe:  Livre docência foi 79?

Dr. Horácio: Acho que foi 78. Outra coisa, na nefrologia, que foi muito boa foi abrir uma pós-graduação para não médicos, uma pós-graduação básica, tá certo? Isso aí foi muito discutido na ocasião e eu acho que foi uma das melhores coisas que a disciplina de nefrologia fez e também porque esse pessoal é excelente, esse pessoal tem tempo para fazer pesquisa, não precisa ver doente sabe?

Dr. Pavão: Ontem, na reunião de pós graduandos, ficou demonstrado que 50% do pessoal é de não médicos.

Dr. Horácio: Isso é verdade e vai acontecer cada vez mais. É um pessoal mais dedicado, à bancada, fica sentado, tem tempo para isso e se dedica a essa parte da pesquisa

Dr. Sérgio Draibe: Eu estou muito interessado na história da disciplina Dr. Horácio. Como é que nós poderíamos resumir as influências científicas, tanto nacionais quanto internacionais, mais importantes para a formação da nefrologia da Escola?

Dr. Horácio: É, eu acho que a influência maior primeira foi do próprio Magid que passou por dois estágios e conseguiu reunir um grupo formado por pessoas divergentes, mas que assumiram uma posição única no sentido geral de progredir cientificamente no todo e não só pessoalmente. A ida para o exterior foi fundamental nesse pensamento científico: o Oswaldo, o Antoine, o Barreto e eu fomos saindo para outros centros de pesquisa no exterior. Depois vieram os outros…quer dizer, não foi uma cabeça única que dirigiu a pesquisa, foram várias e várias cabeças. Acho que a nefrologia da EPM teve sorte em reunir essas cabeças divergentes à principio mas ao mesmo tempo convergentes para pesquisa. Desde 55 pra cá, o grupo foi mais ou menos homogêneo, com uma única exceção que foi a briga com. David Korner…que acabou sendo expulso da disciplina, fora isto quem quis sair saiu, quem não quis ficou, alguns saíram por falta de entrosamento ou motivos pessoais…..as discussões aqui não são discussões em que você guarda mágoa. O Oswaldo e eu tivemos discussões homéricas, mas acabava e não tinha esse negócio de ressentimento. E eram discussões pesadas, nós tínhamos mania de estudar juntos, toda segunda feira,  na casa dele, e passamos anos estudando toda segunda feira…. o Duílio ia também… passamos anos discutindo e toda formação da nefrologia, da pós-graduação, foram oriundas dessas discussões….não haviam divergências tipo: “ah! ele é melhor do que eu, eu sou pior” .  Cada um respeitava o outro. O Oswaldo tinha um gênio muito mais forte do que o meu, muito mais briguento do que eu. Tenho um gênio muito mais conciliador e a coisa foi caminhando e os outros que vieram em volta tomaram como exemplo e foi a mesma coisa. Hoje você vê gente que é mais conciliadora e gente que é mais briguenta. O que precisa saber é realmente respeitar o outro para a coisa caminhar. Cada uma dessas pessoas que foram para o exterior trouxeram um negócio novo, uma metodologia nova ou então um assunto novo para ser estudado e esta foi a contribuição real. Eu estou sentindo no momento atual que o número de indivíduos que estão viajando é muito menor do que na época que a gente viajava e isso não é bom!. Acho que, neste sentido, nós levamos na nefrologia uma vantagem enorme sobre a Faculdade até um determinado período, hoje não mais, hoje eles tem, se não me engano, 12 livres-docentes enquanto nós temos 5? Eles estão viajando muito mais do que nós estamos.

Dr. Sérgio Draibe: Voltando então, complementando a pergunta:  eu posso dizer, por exemplo, que a Chapel Hill foi importante na formação da disciplina de nefrologia, a McGuill, a Cornell tiveram influência em termos de orientação na formação científica?

Dr. Horácio: Com certeza pode. O Sérgio Stella por exemplo foi para Nova Iorque, o Oswaldo foi McGuill e eu fui pra Chapel Hill,  seguramente, cada um de nós trouxe uma mentalidade de pesquisa de estudo entendeu? Importante foi fazer a pós-graduação, fazer indivíduos serem mestres, fazer indivíduos serem doutores… e isso teve influência do exterior… com toda certeza!  Eu acho que, hoje em dia o pessoal que está aí é muito melhor preparado cientificamente… com uma mentalidade científica melhor do que naquela época. Eu tive que aprender a pipetar, ninguém me ensinou a pipetar, fui apanhando… as primeiras vezes que o Magid me convidou para trabalhar, acabei  passando semanas dosando glicemia e passava dias inteiros dosando glicemia para saber quantas horas a insulina estaria fazendo efeito, que hora tem o pico…. isso tudo foi o aprendizado. Hoje em dia, o indivíduo tem o aprendizado muito mais fácil porque convive com mais gente que faz pesquisa….fica mais natural… agora, sem dúvida,  teve influência e vai continuar tendo não tenho dúvida quanto a isso.

Dr. Sebastião: Hoje a Escola Paulista de Medicina tem quantos pós-graduandos?

Dr. Horácio: Na nefro tem 112

Dr. Sebastião: 50% não médicos?

Dr. Horácio: Não médicos… exatamente!

Dr. Sebastião: Essa decisão de abrir para não-médicos, numa disciplina basicamente médica composta por médicos, tem quanto tempo?

Dr. Horácio: A Miriam acho que foi a primeira?

Dr. Pavão: A Miriam e minha mulher. Formada em 81.

Dr. Horácio: É, eu acho que pelo menos esses 20 anos aí . no mínimo sabe? Foi uma decisão acertada, foi uma das melhores coisas que se fez na disciplina. Trazer esse pessoal. É um pessoal que ocupa hoje pontos chaves, estão dando aulas em faculdades e estão fazendo  pesquisa básica muito boa

Dr. Sebastião: Quanto tempo um biólogo demora para fazer um mestrado?

Dr. Horácio: Ele faz igualzinho ao médico, quer dizer: 3 anos mestrado e mais uns 3 anos de doutorado

Dr. Sebastião: Não tem diferença…

Dr. Horácio: Não! O que ele tem mais dificuldade é acompanhar os cursos tais como o de fisiologia renal, de patologia clínica etc.

Dr. Sebastião: Qualquer profissional pode chegar aqui e entrar na pós graduação da Nefrologia?

Dr. Horácio: Em ciências biológicas? Pode.

Dr. Sebastião: Enfermeiro?

Dr. Horácio: Enfermeiro pode, o biomédico pode, o biólogo pode, o farmacêutico pode, o nutricionista pode, o psicólogo… tem psicólogo fazendo pós-graduação.

Dr. Sebastião: Mas quem orienta o psicólogo?

Dr. Horácio: É o pessoal dentro da disciplina, por exemplo essa psicóloga está no setor de hipertensão

Dr. Sebastião: Mas é médico que está orientando?

Dr. Horácio: Quem orienta é o médico, é o chefe.

Dr. Pavão: Agora vai ser introduzido uma consultoria de psicólogas pra orientar. Dr. Walter tem 4 ou 5, iniciou um ensino-pesquisa e o que a gente deve fazer é colocar uma consultora. Não sei se você sabe mas já está no 20o Congresso Internacional de Psico-nefrologia, já são 20 anos, um por ano de Psico-nefrologia, quer dizer, a gente tá parado nisso.

Dr. Sebastião: A sociedade específica de cada categoria profissional, como vê isso? Como é que é psicólogo recebendo uma pós-graduação de não psicólogos?

Dr. Horácio: Isso talvez o Sérgio Draibe possa responder melhor do que eu. Teve uma dificuldade desse pessoal que tem mestrado, doutorado em nefrologia em fazer parte da Sociedade Brasileira de Nefrologia…

Dr. Sebastião: Sendo psicólogo?

Dr. Horácio: Biomédico de um modo geral. Eu nem sei agora se isso já foi resolvido A Sociedade Brasileira de Nefrologia não queria admitir esses indivíduos, mestres e doutores não-médicos, fazendo parte da Sociedade. Mas está cheio de exemplos de indivíduos não médicos dentro da nefrologia mundial de grande sucesso.

Dr. Sérgio Draibe: O senhor acha que a biblioteca da Opas, aqui na Escola Paulista, foi importante pra nós na pós-graduação de um modo geral ou não?

Dr. Horácio: Mais uma vez eu tenho que mencionar o Magid Iunes, quem trouxe a biblioteca. Esta biblioteca que está aqui foi o Magid. Essa biblioteca era para ser feita num dos países da América do Sul e  foi devido ao esforço pessoal do Magid que essa biblioteca veio pra cá e ela é a sede de toda parte bibliográfica da América Latina e do Caribe. Isso foi um trabalho do Magid, por isso que quando eu falo do Magid eu falo com carinho especial, acho que as pessoas não lhe dão o valor merecido que realmente ele tem. Ele foi diretor da escola, teve uma dificuldade muito grande na época em que ele foi diretor, mas quando ele foi diretor, acho que esqueceram tudo, todo passado e se admite apenas a parte de quando ele foi diretor e foi uma época difícil… o hospital devia muito dinheiro, a escola não estava em boa situação… então acho que ficou esta imagem do Magid e se esqueceram, na realidade, de quem o Magid era.

Dr. Sérgio Draibe:  A base pra criação dessa enorme pós-graduação da Escola Paulista foi essa biblioteca, no seu modo de ver?

Dr. Horácio: Ajudou bastante, sem dúvida nenhuma, porque primeiro as revistas eram muito caras né, e para você fazer uma pesquisa médica  era muito difícil. Você tinha que ir naqueles livros lá e procurar. Eu me lembro que quando fiz o doutoramento, tinha uma salinha onde eu separava toda bibliografia. Aquela salinha era minha e ninguém punha a mão.

Dr. Sergio Draibe: Eu gostaria de mencionar que essa biblioteca, dispõe hoje do serviço por Internet onde em Cajuru usamos continuamente. (risos). (NR: Cajuru,SP. Cidade Natal do Sergio)

Dr. Horácio: Eu provo (risos).

Dr. Sebastião: Professor, não tem como falar do senhor e não falar do Dr. Oswaldo, essa relação de amizade que vocês tiveram durante todo esse tempo e com duas personalidades muito distintas, separadas e com brilhos individuais. Essa relação de amizade, que perdurou durante toda uma época, foi construída ao longo do tempo. Gostaria que o senhor comentasse um pouquinho a respeito dessa amizade, desse tempo que o senhor teve com ele compartilhando de tudo, basicamente da vida dele e ele da vida do senhor. Eu gostaria que o senhor comentasse algo a respeito dessa amizade que é conhecida nacionalmente.

Dr. Horácio: É, eu acho que já devo ter falado um pouco sobre isso. O Oswaldo e eu   estabelecemos uma amizade muito sincera, muito homogêneanenhum mentindo pro outro, nenhum escondendo as coisas do outro e a medida que os anos foram passando a família ficou também amiga. Quero dizer, minha mulher amiga da esposa do Oswaldo. Quando ele foi operado 2 vezes nos Estados Unidos, os filhos eram pequenos, e eu estava lá pra fazer qualquer coisa. Alugávamos casas juntos em Campos do Jordão, era um terreno grande onde tinham 2 casas, a gente passava as férias de julho juntos e  acho que 90% das viagens pro exterior, nesses 40 anos, nós fizemos juntos. Aqui em São Paulo, em todas as festas familiares e saídas aos sábados nós fizemos juntos. Oswaldo e eu tínhamos uma relação de amizade muito sincera e muito aberta, embora pudesse haver discussões, tinham discussões, tinham divergências mas que a gente chegava a uma conclusão sem nenhuma mágoa. Os primeiros anos da minha vida, aqui em São Paulo, já quando eu trabalhava com Magid, passava o natal na casa do Magid. Depois de 20 anos ou mais um pouco pra cá todo natal eu passava na casa do Oswaldo. Eram brincadeiras, era tudo isso portanto… realmente é um indivíduo que me faz falta, sem dúvida nenhuma, pois éramos muito abertos um pro outro, não escondíamos absolutamente nada, mesmo particularidades da vida de cada um dentro da família, a gente discutia. É difícil você encontrar dois indivíduos, um recorrendo ao outro e um dando conselhos ou recebendo conselhos ou trocando idéias como  tivemos. Ele influiu no meu aprendizado, eu tive o exemplo dele, isso me foi muito benéfico. Eu falo pouco, hoje em dia, do Oswaldo, falo pouco porque pesa. Nós tivemos uma amizade, assim como você disse, reconhecida nacionalmente. É difícil você ver dois indivíduos trabalhando, durante tantos anos, com laços familiares e assim por diante… portanto ele me faz falta sim.

Dr. Ita: Como tem sido a sua vida depois da aposentadoria? Acho que nunca vi um aposentado tão ativo. Como é que foi esta passagem?

Dr. Horácio: Esta é uma pergunta ótima. Eu me aposentei na Escola, um pouco antes de todo mundo da disciplina. Havia uma divergência se podia ou não receber por duas aposentadorias, então requeri a aposentadoria e o interessante que quando recebi a notícia da aposentadoria estava no consultório atendendo um paciente. O Paulo me telefonou falou: “olha foi publicada a sua aposentadoria”, aquilo foi um choque, um choque assim que você (risos) não imagina! Olha, por pouco eu larguei meu paciente mas assim que ele saiu eu escrevi uma carta a mão para o Oswaldo falando sobre a aposentadoria etc… tanto assim que é uma carta que depois nós comentamos, não dá para secretário bater, você entende? Porque você escreve, rabisca um pouco e escreve lá adiante, então isso foi um choque mesmo

Dr. Sebastião: O que dizia esta carta?

Dr. Horácio: Dizia sobre o passado da vida de nós dois até a aposentadoria e até, uma frase que eu me lembro que escrevi que “agora que estou aposentado, vamos ver se a gente continua fazendo as coisas juntos”. Ele aposentou acho que uns 3 ou 4 meses depois de mim, mas aí eu tive também o reconhecimento do pessoal da disciplina de Nefrologia, que levou em conta um passado. Eu era o chefe da pós-graduação, o chefe da disciplina e aí então quando me aposentei, o pessoal da disciplina me convidou para continuar chefe da pós-graduação e continuei por mais um ano ou dois. Enquanto isso, o Sérgio estava aqui enfronhado neste hospital (NR: Hospital do rim s Hipertensão) e ,no sentido da construção, tem que ser dito que se esse hospital saiu foi grande mérito dele. Quando estava no fim, eu cheguei. Depois de aposentado ainda fiquei, acho que mais um ou dois meses como chefe da disciplina. Aí se reuniram e escolheram o Arthur como chefe da disciplina. Bom, da hora que escolheram o Artur, eu saí da sala e fiquei acho que meio dia em casa, sem fazer nada, acordei de manhã, fiquei lendo o jornal e falei:  “bom e agora?” Nisso a Léa chegou e numa determinada hora falou:  “bom, eu vou sair porque eu tenho que ir no banco” e eu respondi: ” vai sair coisa nenhuma (risos) você vai ficar aqui, onde é que se viu vai sair?”

Dr. Sebastião: Tipo: espera que eu vou junto!!! (risos) Atualmente o senhor é…

Dr. Horácio: Eu sou, por enquanto, superintendente do Hospital do Rim e Hipertensão. Não tenho vínculo, sou empregado, tenho carteira assinada. Eu pertencia ao Conselho Curador, pedi demissão  porque era uma duplicidade de função e passei a ser funcionário do Hospital.

Dr. Sebastião: A sensação de um dia estar ativo outro dia estar com o carimbo de aposentado é coisa muito ruim mesmo.

Dr. Horácio: Não é brincadeira. Como eu disse a vocês, eu estava com doente quando o Paulo telefonou. Tive um choque, mas um choque emocional, acho que só não comecei a chorar porque o doente estava na minha frente

Dr. Sebastião: Quer dizer, não foi um choque de alegria.

Dr. Horácio: De jeito nenhum!!!, mas de jeito nenhum!!!!, não foi de alegria, alegre estou hoje de trabalhar do jeito que estou trabalhando. Se você vai aposentado na Escola, você se sente um estranho, é impressionante a diferença entre o dia anterior da aposentadoria e o dia posterior à aposentadoria, você se sente um estranho…  você sente-se demais, é uma sensação que não é boa não, realmente não é boa, foi uma experiência ruim.

Dr. Sérgio Draibe:  Tem duas sensações, tem a sensação do dia da notícia e tem a sensação do cotidiano aposentado, o senhor chegou a ter esse cotidiano?

Dr. Horácio: Não, eu acho que isso graças a Deus eu não tive.

Dr. Sebastião: Não gosta de jogar damas na praça? (risos).

Dr. Horácio: Não, nada! Eu tive meio dia de aposentado. Meio dia de aposentado.

Dr. Ita:  A Nefrologia  realmente mudou (NR: Ita está referindo a Nefrologia da UNIFESP), expandiu de maneira importante. Porem, todo progresso tem um preço caro a se pagar.  Não estou querendo ofender o chefe atual, mas a Nefrologia ficou tão ampla, tão grande que ficou impossível ter aquela característica  antiga do chefe estar sempre presente nas visitas da enfermaria, por exemplo. Acredito que isto se deva ao  aumento do  número de atividades, numa progressão geométrica. Ficou impossível da gente chegar e poder ir lá na sala do chefe e reclamar e tudo mais. Queria saber como é que o senhor vê o futuro e isso que eu estou falando transcende os limites da Nefrologia. Acho que acontece provavelmente com vários setores. Queria saber como o senhor enxerga o futuro dentro deste contexto.

Dr. Horácio: É um ponto difícil. O que aconteceu na Nefrologia, que era um núcleo pequeno e muito regular, a medida que foi crescendo o número de indivíduos vão surgindo várias lideranças e cada uma dessas lideranças assume o seu grupo. O que eu senti, senti isso nos últimos tempos, que para você reunir o grupo inteiro na enfermaria para discutir o caso ou então nas reuniões de terça-feira e quinta, era uma dificuldade enorme. O indivíduo que fazia hipertensão, queria só fazer isso. Está faltando, no meu modo de ver, um pouco mais desse espírito coletivo e eu tenho medo disso. Passei a ter mais medo ainda quando, nesse Congresso de Natal, eu vi aquela senhora expor a opinião dos alunos sobre nefrologia. Os alunos não estão tendo noção do que é nefrologia, pois a nefrologia está tão dividida que eu tenho medo que ela acabe como Sociedade.  Porque você já tem Sociedade de Diálise, de Transplante, você tem Sociedade disso, daquilo e a nefrologia como um todo está desbaratada. Também reconheço que a vida hoje é muito mais difícil do que era no meu tempo, cada um tem o problema do ganho econômico do dia-a-dia. Mesmo assim,  acho que se não tiver um espírito coletivo, vamos nos perder.  É certeza que você ( aponta para a Ita ) não sabe a metade dos trabalhos que estão sendo desenvolvidos na disciplina hoje e o Pavão idem e ele idem e assim por diante. Está muito setorizado e a nefrologia, como um todo está desaparecendo, entende? Acho que o espírito do conjunto está desaparecendo e ficando uma coisa muito individualizada. Lembro que, quando estava o Chico Figueiredo trabalhando com a gente, ele chegou um dia pra mim, e disse: “lá na bioquímica me ofereceram pra formar um laboratório”, falei: “se você for pra lá, você não volta mais aqui porque não quero divisões”.  Não sei se posso falar isso hoje, pelo número de indivíduos de vários setores, mas acho que isso é uma falta. Está faltando um elo entre os indivíduos. Sinto isso aqui no Hospital do Rim, quer dizer,  todos os indivíduos da disciplina ainda não admitiram, dentro do seu coletivo, a importância desse hospital. Acho que o futuro de cada um da disciplina depende da fusão da disciplina com esse hospital, porque senão vai virar cabide de emprego. Tem muito blá, blá, blá e pouca ação coletiva, é isso que eu estou achando.

Dr. Sérgio Draibe:  Eu queria contribuir e talvez ouvir a sua opinião sobre isso. Eu sempre fui pelo coletivo e tento, pelo tamanho atual da nefrologia, apresentar não como um chefe, mas sim como um coordenador desses vários grupos. Um exemplo desse gigantismo: o setor de uremia quer fazer um jantar. São 70 pessoas envolvidas no jantar, esse é o tamanho mínimo de uma reunião onde entram, obviamente, maridos e esposas do pessoal científico, sem contar nenhum funcionário. Nós estamos sofrendo um processo de crescimento e as dores do crescimento, o que que o senhor acha disso?

Dr. Horácio: É isso que eu estava dizendo.  Realmente, as coisas aumentaram.

Dr. Sérgio Draibe:  Só …..

Dr. Horácio: Pois é, tem o núcleo da uremia que é mais importante do que todos 70. Este núcleo é a cabeça dirigente da uremia, que tem que se unir com a cabeça dirigente da fisiologia renal etc. Cada um aprendendo e transmitindo para outro.

Dr. Sebastião: A nefrologia, no Brasil, acaba se espelhando aqui e na USP. Então, essa estrutura fragmentada é transmitida às faculdades pequenas que acabam achando natural, mesmo sendo pequena, a subdivisão em vários sub serviços. Essa colocação e essa responsabilidade do coletivo precisaria ser cada vez mais incentivada. Um pós-graduando que vem até aqui e fica só num setor, acaba por achar que isso é que é o normal!

Dr. Horácio: Eu acho que é verdade o que você está dizendo. Quando disse que fiquei um pouco mais preocupado nesse Congresso de Natal, em que a mentalidade do aluno não é mais nefrológica, a mentalidade do aluno é transplante, ou então é diálise. O aluno não sabe nada de fisiologia, não quer saber nada de fisiologia, não sabe nada de hipertensão, não sabe nada de sódio, potássio, nada de distúrbio ácido básico, hidratação, desidratação, ele não sabe nada disso… então isso me traz medo. A nefrologia tem uns 30 anos de existência como especialidade médica, talvez um pouco mais, mas está diminuindo. Basta ver que para você obter residentes de nefrologia é uma dificuldade. Acho que esse espírito coletivo precisa começar a funcionar e cada um reservar um tempo, saberque essa reunião é importante, mais importante do queir não sei aonde, que essa reunião eu tenho que ir porque eu tenho que contribuir! Caso contrario, a coisa não caminha.

Dr. Sebastião: O senhor dorme e acorda em que horários? Pratica esporte?

Dr. Horácio: Eu chego aqui no Hospital geralmente em torno de 8 horas. Segunda, quarta e sexta fico aqui no hospital até as 15  horas. Passo pelo Hospital São Luis e vou pro consultório. Nas terças e quintas, tenho ficado mais tempo e saio em torno de 17 horas. Aí eu vou para o consultório, quando eu tenho consulta nestes dias, chego em casa geralmente pelas 20 horas e aí janto. Vou dormir tarde geralmente, entre meia-noite, 1 hora da manhã e durmo mal e acordo ainda a noite (risada) pra ler, ver alguma coisa na TV e volto pra cama.

Dr. Sebastião: Em casa como é que o senhor mata esse tempo? Gosta de navegar na Internet?

Dr. Sérgio Draibe: Tocar violino?

Dr. Horácio: Não, não, nada! Chego em casa, ligo a televisão para ver o noticiário e enquanto isso converso com a mulher. Quando tem algum filho converso com filho, geralmente não tem, pois os filhos só vem fim de semana. Ou então, o Sérgio ou alguém que telefona… todos os meus filhos telefonam diariamente para mim….Isso é uma coisa que não tem jeito, podem estar na Cochinchina que eles me telefonam, todos os três. Então, geralmente, é eu e minha mulher, é um apartamento grande onde nós ficamos numa sala, na frente da televisão, conversando e ultimamente não vou nem a mesa para jantar, colocamos um carrinho na frente da televisão e a gente janta (risos)

Dr. Sebastião: Assistindo capítulo de novela? (risos)

Dr. Horácio: Não, não, não é novela! É, simplesmente, um noticiário, outro noticiário e a conversa do dia-a-dia, conversamos sobre netos, empregada e, atualmente, minha mulher trabalha no consultório comigo e com o Sérgio. Quem a levou para o consultório foi o Sérgio e ela está uns 8 meses lá, tempo integral, pôs o consultório em ordem. Ela foi lá e começou a pôr o arquivo em ordem, começou a fazer compras mais baratas…

Dr. Sebastião: Sérgio …..?

Dr. Horácio: Sérgio Ajzen, meu filho. Sábado e domingo é um dia normal, quer dizer, eu geralmente, venho no sábado no hospital

Dr. Sebastião: Mas para que?

Dr. Horácio: Para eu dar uma olhada (risos). Tenho a mania de 2 ou 3 vezes por semana começar a fazer uma visita no 9o andar e ir até o porão e olhar as coisas. O Sérgio Draibe diz que sou, como é que diz, perfeccionista.

Dr. Sebastião: E o senhor leva alguma coisa para estudar em casa?

Dr. Horácio: Não. Não, não, não eu não estudo nada! Quando preciso estudar alguma coisa. ligo o computador, tiro na Internet resumos e quando preciso alguma coisa, pergunto pra um pro outro. Depois de um certo tempo você aprende meio por osmose. Internet é ótimo porque você fica por dentro das coisas, mas em casa eu não ligo a não ser pra entrar no banco (risada), caso contrário não ligo não!

Dr. Sebastião: O senhor faz os pagamentos todos pela Internet?

Dr. Horácio: Não, nenhum. Quem faz tudo é minha mulher. Ela faz tudo pela Internet. Nunca tomei conta da parte financeira da minha casa, sempre foi minha mulher.  Os primeiros ordenados que ganhei davam para ser guardados dentro de uma cigarreira que era do meu pai. Quando ele veio pro Brasil, ganhou uma cigarreira de prata que acabou ficando comigo. Os primeiros ordenados que eu ganhava dava pra guardar naquela cigarreira, (risos). Agora não, agora está lá de enfeite. É uma peça de prata pura, pesada, bonita, com monograma.

Dr. Sebastião: A Dona Léa jamais seria uma simples expectadora…

Dr. Horácio: Não, não é! Desde o primeiro dia ela não é uma expectadora. Ela influi, discute comigo, defende a posição dela, trocamos idéias e, mesmo na educação dos filhos, nós somos complementares. Se ela dava uma ordem, eu não a desobedecia mesmo que não estivesse de acordo. Poderia falar com ela depois, mas o filho não sabia que eu estava em desacordo. Ela sempre foi muito ativa em tudo, ela é participante até hoje gosta de trabalhar, tem prazer no que faz, é boa companheira, boa amante também. (risos gerais, NR: o papo começa a esquentar…)

Dr. Sebastião:  E o Dr. Horácio paciente? O senhor passou por uns momentos aí meio ruins.

Dr. Horácio: Melhor para comentar isso é o Pavão

Dr. Sebastião: Conhecendo detalhes da medicina e, de repente, se tornar paciente numa situação desfavorável…

Dr. Horácio: É eu tive na vida algumas coisas desse tipo. Quando escolho um médico eu obedeço o médico. Tive internado várias vezes, nunca perguntei temperatura, nunca perguntei pressão e nem remédio que eu estava tomando…

Dr. Sebastião: Não dá vontade falar pro médico: “ei! troca isso por isso!”

Dr. Horácio: De jeito nenhum! Quando me mandam fazer o exame eu faço por pior que seja. Pavão teve essa experiência agora (NR: médico do Dr. Horácio), Ele chegou e disse: “precisa fazer esse, esse, esse exames” Não perguntei na hora e nem quando levei os resultados para ele. Quando o Oswaldo estava aí a gente discutia, tomava umas atitudes juntos, tanto eu em relação a ele e ele comigo. Depois que ele faleceu, evidentemente, ficou muito pesado caminhar sozinho. Eu não discuto ordem por pior que ela seja

Dr. Sebastião: O senhor tenta estudar o próprio caso?

Dr. Horácio: Não tento estudar o caso. Quer dizer, eu mentiria para você, eu pego pela internet as coisas tá certo? Eu vejo, eu dou uma lida e tudo. No entanto, não discuto o problema com o meu médico, fica para mim, tá certo? Não discuti nenhuma doença com ele, ele que veio falar:  “olha você tem isso, isso, isso, isso, precisa fazer isso e isso”

Dr. Sebastião: O Pavão deve suar frio cada vez que o senhor vai à consulta…

Dr. Pavão: Ele se comporta muito bem (risos)

Dr. Sebastião: Finalizando, é o seguinte:  o senhor teve muitas alegrias, mas  sobrou alguma coisa que o senhor faria diferente hoje?  Sobrou alguma tristeza ou mágoa que o senhor tentaria corrigir?

Dr. Horácio: Não. No decorrer da vida, evidentemente, a gente tem alguns pontos altos e outros baixos, mas acho que os pontos altos foram muito mais positivos do que os baixos. Talvez eu devesse me dedicar um pouquinho mais para ganhar dinheiro, coisa que eu não fiz na vida e não faltaram oportunidades.  Unidade de Diálise, por exemplo, só fui abrir uma quando ela deixou de dar lucro. Poderia ter aberto unidade de diálise há não sei quanto tempo… então hoje, se eu tivesse que voltar, dou esse conselho para os mais moços: “precisa cuidar um pouco da vida particular, que faz falta quando você tem mais idade”. De repente você fica mais velho… você passa pela medicina, as pessoas começam a te achar um pouco mais velho e procuram o pessoal mais moço… Muita gente da clínica particular morre e assim por diante. Uma reserva financeira, eu acho que isso…. isso é que me arrependo um pouquinho de não ter feito.

Dr. Sebastião: Esse consultório do senhor, hoje, está nesse contexto?

Dr. Horácio: Para sobrevida! Claro! Faz falta! Lógico que não é por esporte! Nada que eu faça é por esporte no momento (risos).

Dr. Sebastião: Obrigado pela paciência e pela oportunidade de entrevistá-lo.

Dr. Horácio: Sebastião, eu que queria agradecer … é uma honra. Agradeço também a paciência dos meus amigos Sérgio, Ita, Marcelino, Pavão, foi uma conversa boa, eu gostei de recordar coisas que as vezes a gente tem medo de recordar.Então foi muito bom. Muito obrigado pela oportunidade.

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